Esta sexta-feira marca o segundo e último dia da cimeira dos chefes da diplomacia do G20 em Joanesburgo, no âmbito daquela que é a primeira presidência do bloco a ser assegurada pela África do Sul.
Neste encontro, não compareceu o secretário de Estado americano Marco Rubio cujo país pretende sublinhar a sua rejeição da lei sul-africana autorizando a expropriação de terras de Afrikaners, os Estados Unidos querendo também de certa forma "sancionar" Pretória pelo seu apoio à causa palestiniana face a Israel, grande aliado de Washington.
Nesta cimeira cuja agenda oficial também previa discussões em torno do clima e de uma maior integração no bloco do G20, também se abordou a situação da Ucrânia.
Ao anunciar ter convidado o seu homólogo ucraniano para efectuar muito em breve uma visita à África do Sul, o Presidente Cyril Ramaphosa, defendeu nesta cimeira um processo de paz "que inclua todas as partes", inflectindo ligeiramente a sua política em relação à Rússia, seu tradicional parceiro.
Por sua vez, a China, também presente na cimeira, disse que as discussões directas mantidas recentemente entre Moscovo e Washington sobre a Ucrânia, mas na ausência das suas autoridades, representam "uma janela para a paz".
Assuntos sobre os quais reflectimos com o economista guineense Carlos Lopes, antigo secretário executivo da Comissão Económica para África e professor na Universidade do Cabo, que começa por evocar a mensagem enviada pelos Estados Unidos ao não comparecer em alto nível na cimeira de Joanesburgo.
RFI: Qual era a mensagem dos Estados Unidos ao não participar nesta cimeira do G20?
Carlos Lopes: Eu acho que a mensagem é de facto, mais do que a África do Sul, eu acho que os Estados Unidos estão a demonstrar uma grande hesitação em relação ao multilateralismo em geral e, portanto o G20, faz parte de uma dinâmica de contestação de tudo o que seja negociação multilateral. E os Estados Unidos estão, de facto, a demonstrar que o G20 não vai ter a importância que tinha. Há uma erosão da força do G20 que vem até do facto de ter sido vítima um pouco do seu sucesso. Era uma estrutura mais ou menos adormecida em 2008, 2009. Houve a crise financeira internacional que obrigou a que se saísse do quadro do G8 na altura, para se poder responder às dificuldades da economia mundial. Isso acabou por dar grande força ao G20. Mas, depois disso, vítima justamente desse sucesso, multiplicaram-se os apelos para que o G20 interviesse em tudo quanto é coisa. Neste momento, é um conglomerado de reuniões, cerca de 300 por ano, que cada presidência tem que organizar, quase uma por dia. E, portanto, acaba por ser uma perda de foco. E essa perda de foco levou também a uma perda de importância. E agora, com estas decisões por parte da administração Trump, está-se a ver que talvez esteja a chegar ao fim de um ciclo.
RFI: Independentemente da posição americana, o que está a dizer, no fundo, é que o G20, com essas reuniões todas, acaba por ter menos impacto nas decisões mundiais.
Carlos Lopes: Exacto. E vê-se que, por não ter sido capaz de resolver os grandes problemas da macroeconomia mundial, por exemplo, não houve concertação em relação à resposta pós-pandemia. Os problemas de inflação foram perturbados por falta de capacidade de coordenação macroeconómica mundial. A regulação sobre questões fiscais está neste momento muito tensa. Há um desmantelamento do regime comercial que foi construído à volta da OMC. E, portanto, o G20, em cada uma destas áreas, que são áreas da economia para o qual o seu foco devia ser o mais importante, não está a ter a intervenção que tinha antes e, portanto, acaba por falar de tudo quanto é coisa, mas não daquilo que era, digamos, o seu objectivo principal.
RFI: No fundo, o G20, como várias outras entidades formais ou informais a nível internacional, não estará também a ser uma "vítima colateral" da agenda de Trump? Estou a referir-me, por exemplo, ao caso das Nações Unidas, que é o mais flagrante.
Carlos Lopes: Sem dúvida. Eu acho que nós estamos a caminhar para um desmantelamento da ordem liberal que vigorou durante bastante tempo e que serviu de base à construção do que é a arquitectura do sistema multilateral e, portanto, a administração Trump neste momento, está a dar demonstrações muito claras de que não quer continuar com essa ordem e, portanto, não sabemos muito bem o que vai emergir. Mas o que é facto é de que, digamos, a pauperização do sistema em termos financeiros vai ser ainda maior e, portanto, a influência destas diferentes agências do sistema internacional e, sobretudo, o papel do Banco Mundial e do FMI vão estar no centro das atenções da administração Trump. Não me admirava nada que nós chegássemos a uma situação de paralisia sobre uma série de programas e uma série de iniciativas que faziam parte do programa ou das intenções de reforma das instituições de Bretton Woods.
RFI: O que estamos a observar, por exemplo, é a paralisação da ajuda directa dos Estados Unidos. Estou a pensar nomeadamente na USAID, mas também na ajuda indirecta dada através das instituições da ONU. Isto, no fundo, não será uma espécie de arma de arremesso para fazer com que os parceiros dos Estados Unidos acabem por ceder perante as suas exigências?
Carlos Lopes: Eu acho que não funciona. Acho que, antes pelo contrário, a ajuda internacional, ela é sobretudo importante para África, porque nas outras regiões perdeu força. E na África ela foi também descendo em termos de importância, porque nós passamos para um patamar em que representava quase 3 a 4% do PIB africano para, neste momento, cerca de 1%. Portanto, isto são indicações de que a ajuda não tem o peso que tinha antes. Mas mais importante do que isso, temos uma série de novos actores que são agora responsáveis pela principal plataforma de investimentos do continente. Por exemplo, a China é o principal investidor em termos de volume, mas ultimamente foi ultrapassado até por países do Golfo. Nós temos ainda os países europeus que têm a maioria do stock de investimentos, mas não os novos investimentos. Enfim, todas as indicações são de que a ajuda ao desenvolvimento tem perdido também força. O que os Estados Unidos decidiram com praticamente a abolição do seu programa de ajuda ao desenvolvimento tem implicações muito grandes no sistema multilateral, porque a ajuda bilateral vai afectar sobretudo a área da saúde, que era onde estava a grande concentração da ajuda. Portanto, a saída da OMS é uma indicação de que não se vai mais aceitar o que era, digamos, o consenso mundial sobre as questões de saúde. E nós sabemos quais são as posições do secretário de Saúde que acaba de ser nomeado, Robert Kennedy, que é muito céptico sobre a regulação em matéria de saúde, incluindo vacinas. E nós depois temos, digamos, o impacto da saída dos Estados Unidos em termos financeiros das várias agências da ONU. Mas, como eu dizia antes, também a possibilidade de não contribuir para o reforço que foi aprovado há pouco tempo da "arma constitucional" do Banco Mundial. E se isso vier a acontecer -e eu acho que vai acontecer- ou seja, não fazer a contribuição que estava prevista, nós temos um "efeito ricochete", que é do custo de capital para os países africanos ser muito mais elevado por causa do aumento do risco. E, portanto, as consequências acabam por ser importantes, mais do ponto de vista colateral do que do ponto de vista da ajuda directa que era fornecida até agora.
RFI: Entretanto, no âmbito desta cimeira, também se falou muito da Ucrânia. Apesar da sua proximidade com Moscovo, a África do Sul defendeu uma solução negociada que "inclua a Ucrânia". A China, por sua vez, considerou que se abriu "uma janela" para negociações, referindo-se ao diálogo directo entre os Estados Unidos e a Rússia. Como é que se podem interpretar estes dois sinais?
Carlos Lopes: São sinais de que os países dos BRICS não têm um entendimento comum sobre a geopolítica internacional. Têm interesses comuns, mas também têm diferenças. E, portanto, quando acontecem estas oportunidades de poder mostrar essas diferenças, é importante para assinalar uma certa independência. E penso que foi isso que fez a África do Sul e é isso que faz a China, para não parecer que está todo o mundo no seio dos BRICS, num alinhamento perfeito, o que não é o caso.
RFI: Como é que fica a agenda da África do Sul nesta cimeira? Também havia na ementa a questão climática e também uma maior integração no grupo do G20.
Carlos Lopes: É evidente que a África do Sul estava a contar com esta presidência, primeiro para pôr a voz da África muito mais vibrante, porque é a primeira ocasião de participação completa integral da União Africana, que foi admitida o ano passado do ponto de vista formal. Segundo, porque queria que as questões que são particularmente prementes para o continente estivessem, digamos, no topo das preocupações mundiais. E daí, portanto, o slogan de ser uma cimeira que deve se concentrar sobre a solidariedade, a igualdade e a sustentabilidade. Era o slogan que a África do Sul escolheu. E atrás desse slogan, as prioridades são de tentar conseguir uma resiliência do ponto de vista da resposta aos desastres climáticos, de conseguir que os minerais críticos sejam objecto de uma "approach" que põe os países africanos no centro também da transformação da cadeia de valor. Ou seja, não mais fazer a exportação de matérias-primas sem transformação local e, portanto, as outras questões que têm a ver também com, digamos, a taxação. As questões da igualdade têm a ver um pouco com a taxação, que foi um tema introduzido pela presidência brasileira quando se deu esta. E eu acho que vai haver linguagem no comunicado final, que vai seguramente nesta direcção, ou seja, dar importância às questões do clima, dar importância às questões da estruturação de uma resposta ao problema da desigualdade e de aumentar a solidariedade que é, digamos, uma linguagem codificada para dar mais atenção a África. Mas eu penso que não vai haver consensos. Normalmente os comunicados são adoptados por consenso. Não sabemos muito bem qual vai ser a reacção dos Estados Unidos porque eles têm dificuldades com este tipo de linguagem e, portanto, é muito provável que haja uma aprovação com uma qualificação de voto, como se faz muitas vezes, onde o aquilo que não está de acordo deixa passar, mas depois faz uma qualificação, fica registado de que não está de acordo.
RFI: Mais atenção a África também significa mais atenção aos conflitos que estão neste momento a decorrer em África. Estou a pensar no Sudão, estou a pensar também na RDC, sobre os quais o mundo permanece mudo.
Carlos Lopes: Pois, porque nós temos agora uma diminuição muito grande dos meios de intervenção e temos, digamos, uma espécie de abertura para que a lei do mais forte impere. Porque é isto que as relações internacionais nos estão a demonstrar por parte dos países mais poderosos. E, portanto, acaba por ser uma contestação da ordem tradicional. Não há muitas possibilidades de chegar a acordos no seio do Conselho de Segurança e, portanto, as indicações que vêm do Conselho de Segurança das Nações Unidas é de que há divisão. Portanto, quando há divisão, as partes em conflito aproveitam-se dessa divisão para poderem fazer imperar a sua própria interpretação do conflito. E, portanto, nós estamos provavelmente no princípio de uma curva de deterioração das questões de segurança, porque as doutrinas de manutenção da paz estão completamente ultrapassadas com os desenvolvimentos actuais e as novas tecnologias, porque os protagonistas dos vários cenários políticos se sentem um pouco mais à vontade para poder fazer imperar a força. E também porque há um desinteresse e um desengajamento em relação aos conflitos que se consideram serem mais marginais e que não perturbam, digamos, os interesses principais dos grandes países. Então, alguns dos países africanos que estão em conflito não têm muita importância para os grandes e, portanto, acaba por se deixar um pouco acontecer o que tiver que acontecer.