Enterrados no Jardim

Comércio de literatura para cansados. Uma conversa com Gonçalo M. Tavares


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Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábitos, receando que um dia deixem de contar com eles para estas liturgias. Dado o imenso desprezo com que se olha hoje para a literatura, tendo esta sido reduzida a esse conteúdo processional, chamando a si essas actrizes que adoram representar o papel das viúvas inconsoláveis do espírito, há muito nos acomodámos a este registo piedoso, que não admite que aconteça algo de inesperado e que nos faça sentir que vai estar outra vez tudo em aberto, tudo ainda por dizer. A começar precisamente por essas coisas que de tão cultuadas há muito deixaram de ser levadas a sério. Foi precisamente o prestígio aquilo que deu cabo da literatura. Morreu dessas honrarias e desse chorume dessas que os foram envenenando para reclamarem os benefícios sociais e a pensão por viuvez. Houve um momento em que o escritor, ao sentir que a lepra do renome se lançava sobre ele e a sua obra, compreendeu que dificilmente se libertaria dessa dignidade imobilizadora, dessa sacralização sufocante, tornando-se uma instituição à medida que o regime o anexava, para poder ignorá-lo em boa consciência. Este processo coincidiu com o momento em que o poder percebeu que a melhor forma de industriar as consciências seria substituir a realidade pela ficção. Assim, como notava Ballard, se há cem anos, havia "uma distinção clara entre o mundo exterior do trabalho e da agricultura, do comércio e das relações sociais — que era real — e o mundo interior das suas mentes, devaneios e esperanças", hoje essa fronteira parece ter-se apagado, e a ficção e a realidade começaram a tornar-se indistinguíveis. A realidade que não se abatia face às crenças dos indivíduos, começou a ver-se distorcida, e o papel do escritor, que passava por inventar uma ficção que condensasse as várias experiências do mundo real, dramatizando-as de uma forma ficcional, passou a ser exercido sobretudo por propagandistas e publicitários. "As paisagens exteriores dos anos setenta são quase inteiramente fictícias, criadas pela publicidade, pelo consumismo de massas ... a política é gerida como publicidade", vinca Ballard, adiantando que isto levou a que o escritor ficasse desempregado, e as suas ficções foram-se tornando ilegíveis, uma vez que os leitores estavam agora acostumados a uma leitura bastante supérflua da própria realidade. Alguns, mais danados, ainda se reinventaram através de meios perigosos, como insultos, ventos que cercavam, sacudiam e esbofeteavam os seus leitores, aqueles resistentes que tinham a capacidade de enfrentar esses processos de denúncia e loucura. Hoje os grandes leitores são como loucos. E, como nos diz Gonçalo M. Tavares, a loucura é como uma pátria à parte, uma raça à parte... "Os loucos mexicanos falam fluentemente com os loucos russos, é tudo gente que se entende". Neste episódio, e no intuito de compreender o estado de decomposição actual do espaço literário, quisemos consultar este homem que dirige há muito esse gabinete de curiosidades, estudos avançados e investigações peculiares nesses bairros abandonados e velhos edifícios ou fábricas desactivadas onde alguns dizem ouvir ainda a imaginação a fazer das suas a altas horas. Em vez de nos vir com as tão comuns e estafadas rotinas desses leitores que se tomam por uma nobreza recolhidos nas setes quintas do espírito, a sua obra consegue ser instigante sobretudo nos momentos em que desenha e nos enreda em percursos de leitura bastante improváveis e audaciosos. Ele ainda é dos últimos que parece ter claro que "o estilo de um escritor não é o modo como ele penteia os cabelos enquanto escreve".

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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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