Marine Le Pen foi condenada, esta segunda-feira, a 4 anos de prisão, onde se incluem dois anos de pena efetiva em regime domiciliário. Para além disso, foi-lhe aplicada uma pena de inelegibilidade pelo período de 5 anos, com efeitos imediatos, o que a impossibilita de se candidatar às próximas eleições presidenciais de 2027.
A líder da extrema-direita e outros 8 eurodeputados do partido União Nacional foram condenados por desvio de fundos públicos do Parlamento Europeu, em prol do partido, num esquema que durou mais do que uma década e que lesou esta instituição europeia em cerca de 4 milhões de euros. Marine Le Pen já reagiu, continua a reclamar a sua inocência e fez saber, esta tarde, que já apresentou recurso.
Em entrevista à RFI, Vítor Ramon Fernandes, professor adjunto da Sciences Po Aix en Provence, aqui em França, começa por defender que esta condenação já era expectável.
RFI: Na sua óptica, já era expectável que esta condenação fosse tão severa?
Vítor Ramon Fernandes: Tudo indicava que havia suficiente evidência, provas de que, de facto, havia ali um problema e que, que com toda a probabilidade, levaria a uma condenação. Parece que, de alguma forma, há, não digo unanimidade, mas a maior parte das pessoas esperava uma condenação, eventualmente, com a excepção de apoiantes do Rassemblement National. Agora, o que está aqui em discussão, de certa forma, é a gravidade da pena que é aplicada.
Os juízes, naturalmente, têm uma moldura penal e, portanto, não podem fazer o que lhes apetece. Têm que se guiar por essa moldura penal e aplicar a lei em função da evidência que lhes é submetida, mas é verdade que, cada vez mais, os juízes têm um poder muito grande, com decisões de grande impacto, quer político, quer outro, e, neste caso, como muito bem disse, com aplicação imediata, o que dificulta de alguma forma fazer apelo.
Há muita discussão sobre se este é um processo que pode demorar muito tempo e inviabilizar, de alguma forma, quase totalmente, uma candidatura de Marine Le Pen à presidência, em 2027, ou se, por outro lado, pode haver um procedimento mais rápido. Enfim, com uma decisão que seria revista, por exemplo, em janeiro do próximo ano ou coisa que o valha, que de alguma forma pudesse facilitar, embora isso também seja complicado para ela do ponto de vista político.
RFI: Seria, neste caso, um calendário muito apertado, seria quase impossível a apresentação da candidatura para 2027...
Vítor Ramon Fernandes: É um caminho muito estreito e eu diria que, para ela, do ponto de vista da estratégia política do partido e dos seus apoiantes, eu penso que é muito arriscado. Portanto, o risco seria que ela continuasse, mesmo que a decisão fosse de alguma forma rápida, dentro do prazo que eu referi, mas enfim que depois se calhar não é tão rápida quanto se pensa. Nós sabemos que a justiça nos países democráticos também não funciona, por razões óbvias, com a rapidez que nós desejaríamos em vários casos. Portanto, neste se calhar também não seria excepção. É verdade que se há uma decisão que é, se calhar a mais provável dela não obter ganho de causa, isso depois poderia inviabilizar qualquer outra candidatura do Rassemblement National, quer seja Jordan Bardella ou qualquer outra pessoa.
RFI: No seu entender, excluir Marine Le Pen juridicamente da contenda eleitoral para as próximas presidenciais de 2027 será pôr em causa a democracia, como ela e o seu partido afirmam?
Vítor Ramon Fernandes: Eu não quero ir por esse caminho, porque se nós começamos a pôr em causa este tipo de decisões, de alguma forma, também começamos a pôr em causa todo o sistema democrático. E a França não é uma república das bananas. E, portanto, nós temos de ter algum cuidado e não me parece que seja por aí que devemos avançar.
Agora, é verdade que, tendo em consideração o poder que os juízes têm, a gravidade, se quiser, das decisões que tomam, com as dificuldades que se colocam depois em termos de recurso, como é neste caso, é verdade que eu acho que as decisões que são tomadas têm de ser muito, muito bem fundamentadas do ponto de vista jurídico, e eu diria mesmo, também exclusivamente do ponto de vista jurídico.
E aquilo que se tem visto nalguns países, e eu incluiria a França também nesse caso, se calhar um bocadinho diferente de Portugal... É que eu acho que da parte da magistratura há muitas vezes algum comentário e posicionamento político que, de alguma forma, contamina este tipo de coisas.
E quando há decisões destas, mesmo que elas sejam muito bem fundamentadas (eu não estou discutir isso porque eu não sou jurista), a verdade é que elas contaminam e levam a que alguns possam por em consideração: “pois isto era um bocadinho expectável porque houve considerações” e houve, de facto, considerações de um teor que são muito contra o Rassemblement National e, portanto, isso leva a que haja, de alguma forma, alguma perda de credibilidade e um pôr em causa do regime democrático, que também é grave em si.
E é problemático porque é verdade que, no passado, houve posicionamentos até do Sindicato da Magistratura de travar o avanço do Rassemblement National, etc. Este tipo de comentário, vindo da parte da magistratura e dos juízes e não só juízes, penso que é despropositado de alguma maneira e não deveria ocorrer. É descabido, do meu ponto de vista.
Nós, quando queremos ter um posicionamento de dizer que há aqui uma diferença e uma separação entre facto e valor, digamos assim, que é o que está aqui em causa, ou seja, eu baseio-me numa análise apenas dos factos e não ponho juízos de valor, a verdade é que se eu quero que isso aconteça, eu não posso depois fazer juízos de valor no quadro daquilo que é a minha função enquanto jurista, na magistratura. Portanto, isto é complicado. Nós estamos a ver isto a complicar-se em vários países.
Há um poder, de alguma forma, que alguns consideram excessivo. Não é só em França. Veja o caso dos Estados Unidos, com o Supremo Tribunal. Há quem considere, de facto, que há aqui um poder, enfim, exagerado ou excessivo, de alguma forma, sem controlo, que não são eleitos e não têm controlo. E portanto tem que haver aqui um cuidado, que não sei se houve ou não houve. Espero que sim, mas este caso particular é grave no sentido das consequências. De facto, o Rassemblement National vê-se com grandes dificuldades pelo facto de ver a impossibilidade de ter a sua candidata, que é Marine Le Pen.
RFI: Eu ia focar-me precisamente esse ponto. Tendo em conta esta decisão, em que estado é que fica agora o partido da União Nacional?
Vítor Ramon Fernandes: É complicado. Isto aqui ainda está muito a quente. Temos de deixar assentar a poeira para ver quais são as decisões que vão ser tomadas. Eu penso que, de alguma forma, há alguma probabilidade de que seja Jordan Bardella a substituir, dado que também no início o sonho do Rassemblement National era ter Marine Le Pen como Presidente e Jordan Bardella como primeiro-ministro. Isso é pouco provável. E, portanto, eu diria que, sendo ele o presidente do partido, apesar de ela ter feito comentários que ele é muito jovem ainda e etc, eu penso que existe uma forte probabilidade mesmo de amanhã ser ele. Ele tem demonstrado algumas credenciais no partido, embora, segundo parece, ele não tenha unanimidade nos apoios dentro do Rassemblement National.
RFI: E será que ele conseguiria captar tantos votos como Marine Le Pen?
Vítor Ramon Fernandes: Essa é a grande questão. Eu acho que do ponto de vista do Rassemblement National, tendo em consideração aquilo que aconteceu aqui neste julgamento, a decisão que foi tomada, pode de alguma forma, acabar por mobilizar ainda mais os apoiantes. O que isto significa é que, neste caso concreto, muitas das pessoas do Rassemblement National, quer sejam militantes, apoiantes ou votantes, se se sentissem lesadas pelo facto de Marine Le Pen não se poder candidatar à Presidência da República, mobilizar-se-iam para maior apoio e votar seja em que candidato for, desde que seja o candidato do Rassemblement National. E, portanto, nesse sentido, podia ser que Jordan Bardella beneficiasse de um apoio sólido, pelo menos equivalente ao do Marine Le Pen.
RFI: Tenho uma última questão para lhe fazer: considera que podemos falar de um verdadeiro terramoto político para a classe política francesa?
Vítor Ramon Fernandes: Isto vem abalar a situação, porque nós já tivemos no passado vários casos com Cahuzac ou com o partido Modem, a história do primeiro-ministro Bayrou. A justiça de facto tem apertado, relativamente a estas questões do Parlamento Europeu também. E, portanto, é verdade que isto causa aquilo da parte de alguns, alguma indignação, se quiser, vendo este poder dos juízes como excessivo, isto pode levar algum descontentamento, que pode ter consequências políticas de manifestações e outras coisas, por um lado.
Abala, de alguma maneira, porque a longo prazo algumas pessoas também podem sentir, que, de facto, não se querem posicionar em carreiras políticas porque começa a ser um “metier dangereux” (tradução: profissão perigosa) , digamos assim. E, portanto, nesse sentido, também só acontece se a pessoa cometer crimes. Mas isto é uma vida complicada, a política, e, portanto, há sempre riscos nestas coisas.
Eu considero que isto pode trazer aqui um debate, de facto, mais severo, mais profundo, sobre esta imiscuidade ou potencial imiscuidade entre a política e o direito, que é um debate problemático. Há aqui um risco que é o facto de haver o receio de que a justiça começa a ser contaminada ou demasiadamente contaminada com a política porque isto leva a uma perda de confiança na justiça e põe em causa a democracia e os regimes ocidentais. É uma situação muito perigosa e daí eu ter referido no início que a magistratura tem que ter muito cuidado no seu posicionamento político e nas manifestações que faz.
A pior situação que nós podemos ter é amanhã o sentimento de que, de facto, as decisões jurídicas, embora tenham fundamento jurídico também podem ser objecto de uma influência política. Isso é muito complicado e problemático.