Enterrados no Jardim

Desamparados frente à noite. Uma conversa com Pedro Levi Bismarck


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Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve os elementos de discórdia ao seu redor, tem alguma possibilidade de se autonomizar face ao presente. Como alertava Heiner Müller, que quisemos arrastar na bagageira, as obras de arte tenderão a ser prisões e as obras-primas cúmplices do poder. Pelo contrário, bebendo a sua água feroz pelas mãos do quotidiano, os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”. Devemos cair nas coisas dos outros, viver a relação mais íntima, ser as pulgas insaciáveis da tradição e dos mortos, retomar-lhes os textos à semelhança deste inclemente montador, atacar os grandes reservatórios, alimentar a distância mais persuasiva, restaurar as propriedades perdidas, inventá-las. A propósito, eis uns versos de Novalis dedicados a um outro poeta que lhe permitiu uma visão de magnífica abertura: “Quando a chave de toda a criatura/ seja mais do que número e figura,/ e quando esses que beijam com os lábios,/ e os cantores, sejam mais que os sábios,/ e quando o mundo inteiro, intenso, vibre/ devolvido ao viver da vida livre,/ e quando luz e sombra, sempre unidas,/ celebrem núpcias íntimas, luzidas,/ quando em lendas e líricas canções/ escreverem a história das nações,/ então, a palavra misteriosa/ destruirá toda a essência mentirosa.” Hoje, e para efeitos de delimitação de zonas exclusivas, o próprio ar do tempo mal circula, vive-se segundo fórmulas de confinamento, e o espaço de comunicação representa cada vez mais uma unidade insonsa, toda uma estrutura putrescente cai sobre nós, e o sentido que este tempo busca resolve-se contra a memória, impregnando de mentiras e vícios a linguagem. A única promessa que se fazem os imbecis é que muito em breve já não haverá quem possa fazer a outro sentir o peso da vergonha, envergonhar-se seja do que for. Até nisso vamos perdendo o sentido do religioso, e mesmo aquela voluptuosidade que Novalis ligava em particular à religião cristã, notando que “o pecado é o maior atractivo do amor divino – quanto mais um homem se sente pecador, mais cristão é”. Mas em breve mesmo o sentido moral cairá inteiramente em desuso, esse sentido que ele nos diz ser contínuo ao poder criador absoluto, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita, do microcosmos, da divindade real em nós. Hoje, pelo contrário, só resta a hiena, esse animal alegórico da matemática que, de acordo com Müller, sabe não haver resto e cujo deus é o zero. Em breve, não restará nada, nada a não ser a própria gramática da disputa, daqueles que se fazem a guerra mesmo por ninharias, e já o vemos nos supostos criadores, esse medo persistente dos que esperam fazer valer os seus títulos de propriedade no reino do espírito. Não haverá mais nada senão a própria escassez, o sentido da falta a incitar-nos aos gestos mais rudes e degradantes, a uma convivência ritmada pela agressão, a razão apenas instruída para devorar tudo, submeter tudo, alimentar-se da carne do outro. Não restará nada, nenhum sonho dentro do sonho, nem um sonho nosso para os mortos. Nem haverá grande necessidade de nomes, a linguagem será ela mesma a ilustração de um esmagamento, contracções sucessivas, e nem haverá orações nem túmulos, apenas o gasto inútil de quem se desfaz entre gritos. Ver um bando de homens amatilhados será a pior das imagens de terror para aqueles que estão em desvantagem. Nenhum nome os defenderá, nenhuma súplica será atendida. Neste episódio, além da respiração assistida que nos foi dada por aqueles que estiveram connosco e de um modo ou de outro participaram na discussão, pudemos desenhar em redor do tão instigante e sagaz percurso crítico de Pedro Levi Bismarck uma relação com as transformações que se estão a operar a grande velocidade nos nossos dias, desde logo um apertar do cerco em termos do uso de uma linguagem corrosiva, que constrange o pensamento e pretende esgotar as condições de existência, levar a uma exasperação dos elementos de representação e identificação. Arquitecto, editor do jornal Punkto, Bismarck é, entre nós, um dos mais pujantes e interventivos actores na produção de um discurso cheio de balanço e um fulgor que articula uma série de saberes de forma a interrogar uma cultura e um horizonte devastados pela predação económica e pela financeirização de todos os aspectos da vida social.
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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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