Enterrados no Jardim

Déspotas, caudilhos e ditadores de bairro. Uma conversa com alguns fantasmas


Listen Later

Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas como esta em que parece mais fácil apontar aqueles que nos falham, em que vamos de ausência em ausência, e, numa altura em que a terra já vai parecendo escassa para enterrar tantos, fica-nos a sensação de que, deste lado, a própria luz parece arquivada, uma "luz-mortalha", para nos servirmos de uma expressão de Rui Nunes, um dos poucos que continuam a dar com o isqueiro nalgum cano e a transmitir o seu morse exasperado que soa pelo edifício e por trás do solene e displicente papel de parede. Diante do desconchavo de tudo, em vez de milagres, suplicamos por desastres que tomem conta de tudo, engulam a vida, façam um pouco de justiça, dando cabo dos planos a quem tem a arrogância de fazê-los, e que são, na sua maioria, os safardanas responsáveis pelo estado das coisas. Mas voltando a um desses impulsos plagiados, desta vez a partir do Vargas Llosa, já ia sendo altura de um romance arrancar por estas bandas questionando-se em que momento preciso é que Portugal se fodeu de vez, e isto homenageando também o coronel que tantas vezes deu trela a essa indagação, e apontou algumas datas, algumas hipóteses bastante firmes, fazendo-nos espreitar as coisas por uma brecha, ver como se deu cabo de um período de suspensão, de quase irrealidade e sonho, que se viveu por aqui durante uns quantos meses, tendo sido talvez a última possibilidade antes de sermos engolidos pela vertigem. Alguém nos avisou: "Quando o tempo for apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade, e quando o temporal, entendido como esse acontecer histórico, houver desaparecido da existência de todos os povos, então, precisamente, as perguntas: para quê? para onde? e depois?, começarão a assombrar-nos como fantasmas"... E aí está, "esse motor de aceleração que comprime séculos em segundos", escreve Rui Nunes. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamava Valéry naquele célebre texto sobre a “crise do espírito” no final da Primeira Guerra, e agora o que nos diz o escritor português é que a ruína se tornou o próprio material de construção deste tempo, adiantando que a ruína exprime hoje a intimidade das civilizações. De resto, à volta, por toda a parte, ouve-se um zumbido e vêem-se as luzes dos monitores ligados, sente-se essa fetidez constante "do silencioso arquivo dos computadores, essa vala comum da modernidade". Por estes dias são as nossas próprias consciências que já arrastam e fazem alastrar esse mesmo sinal doentio, essa condenação que trazemos misturada no hálito. "Os noticiários tornam-se tão poderosos que já não precisam de televisão nem de jornais. Existem na percepção das pessoas. Elas próprias inventam as notícias, suficientemente poderosas para parecerem genuínas. São os noticiários sem os media", escreve DeLillo. Mas se não podemos sentir um verdadeiro ânimo, podemos ter vergonha de termos também caído nisto, e assim vimos pedir muitíssimas desculpas, e então damo-nos conta do motivo porque fazemos isto, porque insistimos em pôr uma frase à frente da outra, ultrapassando o desgosto, buscando o que vem depois, e desde logo também porque, como vincava Georges Perec nas últimas linhas de um dos seus livros… “Escrever: tratar de reter algo meticulosamente, de conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas ao vazio que se escava continuamente, deixar nalgum lugar um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” Aqui está o motivo por que quando não se tem mais nada ao menos podemos virar-nos para os nossos fantasmas, que não nos deixam falar sozinhos.

...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


More shows like Enterrados no Jardim

View all
Prova Oral by Antena3 - RTP

Prova Oral

15 Listeners

FALA COM ELA by INÊS MENESES

FALA COM ELA

11 Listeners

A Beleza das Pequenas Coisas by Expresso

A Beleza das Pequenas Coisas

6 Listeners

P24 by PÚBLICO

P24

4 Listeners

45 Graus by José Maria Pimentel

45 Graus

13 Listeners

Eixo do Mal by SIC Notícias

Eixo do Mal

15 Listeners

Renascença - Extremamente Desagradável by Renascença

Renascença - Extremamente Desagradável

80 Listeners

Humor à Primeira Vista by Gustavo Carvalho

Humor à Primeira Vista

0 Listeners

Expresso da Manhã by Paulo Baldaia

Expresso da Manhã

7 Listeners

Fundação (FFMS) - [IN] Pertinente by Fundação Francisco Manuel dos Santos

Fundação (FFMS) - [IN] Pertinente

1 Listeners

Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer by SIC Notícias

Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer

21 Listeners

Vale a pena com Mariana Alvim by Mariana Alvim

Vale a pena com Mariana Alvim

2 Listeners

Encontro com a Beleza by Martim Sousa Tavares

Encontro com a Beleza

0 Listeners

isso não se diz by Bruno Nogueira

isso não se diz

11 Listeners

Tempo ao Tempo by Rui Tavares

Tempo ao Tempo

1 Listeners