Enterrados no Jardim

Marialvas, beatos, estrategas do armário


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Ao que parece a maior ambição do português é deixar de o ser. Ele viaja para ir descobrir a sua verdadeira nacionalidade, e adora cumular esses traços admiráveis dos povos como ele os fantasia e reconhecer-se aqui e ali, como quem recolhe diferentes opções num buffet. Portugal é o lugar onde o seu exílio se cumpre, e o país serve apenas para tornar ainda mais pronunciado o contraste, para engrandecê-lo. O herói português tem de ter pelo menos uma costela estrangeira, e fala por referência a este sítio como o lugar onde a aventura do seu sangue encalhou. Se o brasileiro é um feriado, como notou Nelson Rodrigues, por cá o nosso reaça de estimação garante que temos a praia como nossa mitologia. A copiar o estilo MECDonald, o Mexia diz que pouco importa onde fazemos praia, que esse verbo, “fazer”, diz tudo, e faz da praia uma actividade, algo que permite pôr um modo da acção nos momentos em que não se está a fazer puto. É um pouco a condição de todos aqueles que mais fazem por cá, ou seja, o aparecer em público a dizer e fazer o que os outros fazem em privado, isto basta para se elevarem a figuras de relevo, uns autênticos mitos nacionais. É o caso dele, e daqueles amigos que ele nas crónicas insiste que tem, mas só naquelas em que não nos vem falar de traições e intrigalhadas a que ele vai aludindo sem nunca explicitar, sempre que, para vir mandar recados, gosta de se travestir de grande parabolista. Ele garante que a praia não é apenas uma estância, uma experiência, uma temporada, que é também uma memória que nos define, e que ele e os amigos todos falam longamente das praias que frequentam ou frequentaram, as praias da infância e depois aquelas que servem para gastar alguma crónica de verão a vir-nos com os seus hábitos e a sua etiqueta balnear. Felizmente, por este ano já nos livrámos, não só dessas zonas mitológicas, como dessas feitorias. Setembro veio com maus modos, antecipou o frio e deu um encontrão aos nossos capitães da areia. Mas esta ideia de não se fazer nenhum, não se transformar nem introduzir nada de novo tem provado ser uma carreira extraordinária e um regime de cumplicidades fabulosas para aqueles que alargaram a tantos outros campos da nossa vida pública este modelo de laborioso fare niente. Veja-se o humor português que desenvolveu recentemente esta vertente tão proveitosa de copiar tudo tal como está e vir desenhar um bigodinho em horário nobre diante de uma plateia que em vez de marchar está para ali na galhofa, a assistir a uma montagem de excertos da realidade como ela é apercebida pelo olho do cu das nossas estações televisivas. O país já nem se reconhece a não ser que esteja a dar na televisão, e não se ri sem ter um maestro para fazer esses recortes e dar os sinais com a batuta: agora todos. E eles riem-se. Do quê? Do país, claro. Com o qual eles não têm nada a ver, pois no fundo são estrangeiros. O cinismo e a hipocrisia consumiram todas as expressões de reflexão, e a cultura portuguesa apenas se deixa enquadrar num regime anedótico. Enquanto isso, a educação moral e religiosa concebe o seu inferninho mediático e distribui a vergonha, a culpa e, por fim, a redenção, e boa parte dos nossos humoristas não passam de padrecas. A chave burocrática na base deste enredo é a capacidade de se lidar com a chatice, as tristuras e a miséria nacional revertendo-as em motivos de chacota… contra os portugueses, mas nunca contra si mesmo. Este é o grande subterfúgio, a única forma de funcionar eficazmente num ambiente que exclui tudo o que seja vital e humano. De respirar, por assim dizer, sem ar. Esse tédio que noutras partes corrói as pessoas na sua relação com o quotidiano, por cá transforma-se numa estratégia de clivagem e num álibi, e ainda numa ocupação desdenhosa. É uma receita de escabeche para consumir os complexos e falhas de carácter que se imputa sempre aos demais. Assim, e servindo-nos da pista fornecida por Foster Wallace, a chave para criar esta desafeição passa por esta capacidade, inata ou adquirida, de encontrar o outro lado da miséria, da inércia, da ninharia, da mesquinhez, da repetição, da complexidade sem sentido. De ser, em resumo, imune à nossa condição comum. Mas esta forma de imunidade acaba por revestir toda uma formação para a indiferença, e podemos sempre contar com os nossos palhaços cínicos para presidirem em horário nobre à grande homilia em que, em vez de uma hóstia, cada um cospe na pia onde alguma representação nossa é posta a arder. Esta capacidade de se anestesiar face à realidade que nos é comum não seria possível sem um quadro mediático que se especializou em alimentar esses complexos e a ideia de que o riso alarve é o melhor remédio. O limbo foi abolido pelo Vaticano, e uma vez que estava por aí, num desses caixotes dos saldos metafísicos, foi comprado por uns patacos e instalado por aqui enquanto programa de entretenimento e de hemodiálise. Assim, por efeito desse anedotário, vamo-nos apoucando e deixando que esse desdém pelo próximo seja o que nos define, vendo qualquer instinto ou impulso de rebelião ser domesticado e suavizado no trato social de acordo com a etiqueta em vigor.
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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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