Este, obviamente, não era eu. E, também não é o personagem principal desta estória. É alguém a descrever o sítio, onde eu, e Beni Makwela, esse sim – o principal personagem da história, nos conhecemos: o maior campo de refugiados da Europa, Mória. Este acampamento de migrantes, apesar de maior, em nada é diferente dos seus semelhantes, ao largo da Turquia, hospedados nas ilhas Gregas.
Concentrações de gente, sem espaço, um cheiro próprio da falta de saneamento, muito calor no verão, muito frio no inverno, pouca água potável, e de ida em aspas para a eletricidade. Dezenas de nacionalidades e personalidades, sequestradas sob a condição de refugiado. Famílias, casais, solteiros, viúvas e crianças de todas as partes do mundo submetidas a maior das violências e miséria humana, a injustiça de nascer na parte errada do globo.
Foi na minha quarta, ou quinta visita ao campo de refugiados de Mória, que conheci Beni Makwela. Era um abril quente, sob o sol do mediterrâneo, e o pó da terra colava-se à humidade da pele. Fui convidado a conhecer as instalações de uma ONG, que proporcionava aulas, refeições, aconselhamento jurídico, entre outras feitorias, aos migrantes retidos na ilha.
Sentado debaixo de um telheiro, num banco de madeira e com vista para o mar, no topo de uma colina, estava Beni Makwela. Da vista posso vos contar que era um contraste, e um refresco para a alma.
Estava nesses dias, como qualquer recém jornalista, à caça de histórias para contar e, já interessado em ouvir a sua, sentei-me ao lado de Beni, esse jovem congolês, de 20 e poucos anos, que parecia lavar a alma à sombra, com a vista para o mar. Entre o meu francês macarrônico e o seu Inglês ao estilo, começamos a trocar algumas palavras, primeiro desapegos, mais tarde desabafos.
Demorou algum tempo até que me contasse a sua história, entre meias resposta e silêncios, ora consentimentos ora reprovações, percebi que havia sido preso no congo, na sequência de uma manifestação religiosa, com algumas motivações políticas.
Havia sido preso no pior dos cárceres, torturado, e quando uma tia sua subornou um dos guardas, conseguiu escapar. Viajou do Congo até Turquia, provavelmente através do Egipto. Na costa ocidental da Turquia pagou a sua passagem a algum oportunista, que faz do tráfico de homens, vida.
Fui lhe fazendo perguntas, as quais evitava ou sorria, mantendo sempre a liberdade do silencio. Perguntei-lhe sobre a espera e longevidade das filas de alimentação, respondeu-me com uma pergunta, a saber se já tinha almoçado. Era por volta das 3 da tarde, e a verdade, é que não, não tinha almoçado. Disse-me então que fosse para a fila na sua companhia, eu torci o nariz… e ele, não hesitou em encostar-me à parede: tens nojo? Ao que fui obrigado a responder, que não, não tinha nojo.
O sol estava forte e a fila arrastou-se por uma longa hora. Chegada a nossa vez de receber o almoço, uma malga para cada um com duas colheres de iogurte, um pão árabe espalmado e uns frutos secos à mistura. Não sei se foi a espera, ou a distração da conversa que me mataram a fome. Ele só comeu pão, era alérgico ao iogurte, e ria-se, enquanto eu comia.
Acabei de comer, acendemos um cigarro, e lancei-me de novo numa maré de perguntas. Às quais, ora ele respondia com silêncios, ora com meias palavras… até que lhe perguntei:
- Quais são as tuas espectativas para a europa?
Ao que Beni respondeu com um espelho, espectativas?
E eu insisti, sim, espectativas… o que pensas tu e estas pessoas aqui no campo, sobre a europa?
Beni olhou para mim, pela primeira vez sem sorriso, com o rosto trancado e disse: escuta, até agora, só tu é que fizeste perguntas, mas enquanto europeu, diz-me lá, o que é que a europa pensa de nós?
Não consegui responder. Roubei-lhe o silencio e assim ficamos o resto da tarde, a ver o mar, a lavar a alma. E o ouvinte, o que é que o ouvinte lhe teria respondido?