Share Oxigênio Podcast
Share to email
Share to Facebook
Share to X
By Oxigênio Podcast
5
11 ratings
The podcast currently has 326 episodes available.
Você já ouviu falar na Comida Frankenstein? Ela faz referência ao nome de um dos monstros mais conhecidos da ficção científica e traz consigo inúmeros debates. Neste episódio, Lívia Pereira e Lidia Torres falam sobre a ética científica instigada pela ficção científica e as problemáticas que envolvem as técnicas de obtenção dos Organismo Geneticamente Modificados, mais especificamente os alimentos transgênicos, ou como já foram denominados no passado, os Frankenfoods ou Comidas Frankenstein. Você vai escutar entrevistas com Vânia Massabni, professora da ESALQ – USP/Piracicaba, coordenadora da pós-graduação em Ecologia Aplicada e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão GEDePE (Grupo de Estudos Desafios da Prática Educativa), onde trabalha com temas ligados a parte ambiental conectados ao ensino de ciências. E também vai ouvir a Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a nutricionista, socióloga da alimentação e professora na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Elaine de Azevedo, que também é produtora do podcast “Panela de Impressão”. Elas vão nos contar como o livro Frankenstein desperta o debate para ética na ciência, porque ele emprestou seu nome aos alimentos transgênicos e quais são os debates que envolvem os OGMs, 30 anos depois da sua criação.
[sons de tempestade]
Narrador (Daniel Rangel): “Foi numa lúgubre noite de novembro que contemplei a conquista de meus pesados trabalhos. Com uma ansiedade que era quase agonia, coletei os instrumentos da vida ao meu redor, para que pudesse infundir uma centelha na coisa inanimada aos meus pés. Já era uma da manhã; a chuva batia melancolicamente contra as vidraças e minha vela fora quase toda consumida, quando, sob a luz débil, vi o torpe olho amarelo da criatura se abrir, ela respirou fundo, e um movimento convulsivo agitou seus membros” (Shelley, 2017, p.65).
Lívia: Esse trecho que você acabou de ouvir foi o relato do personagem Victor Frankenstein, o cientista que é protagonista de um dos livros mais famosos do século XIX. Você provavelmente já leu ou ouviu falar, porque ele ganhou diversas releituras em filmes e desenhos animados. Também aparece em propagandas e em produtos por aí. De peças de teatro a fantasias de carnaval, de filmes e músicas a jogos e histórias em quadrinhos, a lista de menções ao universo do livro e do personagem Frankenstein é inesgotável. Escrito por Mary Shelley, publicado em 1818, quando a autora tinha apenas 20 anos, o romance adquiriu status de clássico da literatura e se disseminou pela cultura popular mundo afora. O trecho que você ouviu conta exatamente o momento em que Victor Frankenstein dá vida a um corpo inanimado, que ele construiu com pedaços de outros corpos, de pessoas que já estavam mortas.
Lidia: Esse fato narrado no livro é um dos motivos dele ser considerado a primeira obra de ficção científica da literatura ocidental. Mary Shelley ousou contar uma história que descrevia a possibilidade de criar vida por meio de princípios científicos e não mais sobrenaturais, como era de costume até então.
Lívia: O livro discute as principais questões da segunda revolução científica, que marcou sua época. As tensões científicas que estavam fervilhando tiveram grande impacto na narrativa. Foi um momento, na história da humanidade, de intensas mudanças no entendimento do homem e da natureza.
Lidia: Os novos conhecimentos científicos pareciam achados fantásticos, como os estudos de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, que desafiava a visão tradicional da criação divina da vida. Outro exemplo são os achados de Luigi Galvani, com seus experimentos em bioeletricidade, que procuravam estabelecer uma relação entre a corrente elétrica e o impulso nervoso que causa a contração muscular. As descobertas de Galvani levaram à construção da Pilha Voltaica e marcaram a evolução dos estudos sobre magnetismo e eletricidade.
Narrador: “Ascendem aos céus: descobriram poderes novos e quase ilimitados; podem comandar os trovões do céu, imitar o terremoto e até escarnecer do mundo invisível com suas próprias sombras” (p.56) “Após dias e noites de incrível labuta e fadiga, descobri a causa da geração da vida; mais do que isso, tornei-me capaz de animar matéria sem vida” (Shelley, 2017, p.60).
[Vinheta Oxigênio]
Lidia: Como a gente comentou, a originalidade do livro está, exatamente, nessas descrições dos progressos científicos da época, diante das indagações fundamentais sobre a vida e a sociedade. A ficção científica construída por Mary Shelley foi relevante para as discussões que estavam quentes na sociedade inglesa do século XIX, mas que reverberam ainda hoje em questões importantes da atualidade: o desejo humano em transcender os limites da natureza por meio da ciência e, ao mesmo tempo, ainda ter de lidar com o diferente ou o inimaginado.
Lidia: Eu sou a Lidia Torres, aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor.
Lívia: Eu sou a Lívia Pereira, também aluna da Especialização no Labjor. Neste episódio do Oxigênio vamos apresentar um projeto, comandado pelas professoras Vânia Massabni e Raquel Rodrigues, da ESALQ – USP Piracicaba, que levou a leitura de ficção científica para as aulas de biologia de uma turma do ensino médio. A professora Vânia conversou com a gente e contou um pouco dessa experiência de ética na ciência com os jovens, a partir do livro Frankenstein.
/Lívia: Neste episódio também vamos falar sobre a ética nas pesquisas ligadas à engenharia genética, principalmente nas pesquisas de recombinação gênica relacionadas com os Organismos Geneticamente Modificados, conhecidos como OGMs. Nossos entrevistados vão apresentar um panorama dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento e de consumo dos alimentos transgênicos e nos ajudar a responder à pergunta instigada pela narrativa da ficção científica: Será que aqueles questionamentos sobre a ética na ciência iniciados lá no século XIX e levantados pela Mary Shelley no livro ainda reverberam nos dias de hoje? De lá pra cá nós avançamos enormemente nas técnicas científicas, mas será que já superamos os problemas que envolvem a ética na ciência? Será que hoje em dia levamos em consideração o limite dos usos da ciência diante de seus efeitos na sociedade?
[música de transição]
Vânia Massabni: “Frankenstein é uma obra que inaugura o gênero de ficção científica, eu vim entender isso também com esse trabalho. Então, quando a Raquel trouxe a ideia eu falei: bom, dos temas eu acho que é o que mais me atrai, porque ele também tem uma ligação grande com biologia. Se pensássemos por exemplo em 2001: uma Odisseia no espaço, talvez desse para discutir mais física, mas eu procurei a ideia de você ter um monstro e esse monstro flerta com terror e tem uma parte social do monstro, que não é aceito. O que se espera, por que ele é monstro, na verdade, ele é diferente, porque ele foi feito de partes, de pessoas mortas? Então, isso causou muita comoção entre os alunos e a gente teve que explicar que isso não era nem ético ser feito, mas era uma discussão ali, uma discussão ética.
Lidia: Essa é a Vânia Massabni, a professora que orientou a Raquel Rodrigues no projeto de leitura de ficção científica em sala de aula. Desde 2020 ela coordena a pós-graduação em Ecologia Aplicada e seu grupo de pesquisa trabalha com temas ligados a parte ambiental, conectados ao ensino de ciências. Como ela apontou, a articulação entre a realidade científica e a imaginação dada pela ficção abre portas para reflexões acerca do impacto da ciência em nossas vidas. Um bom exemplo dos avanços no campo da biologia, como a gente já comentou, são os estudos ligados à engenharia genética, que envolvem técnicas de manipulação do DNA em laboratório. Essa tecnologia avançou muito na passagem do século XX para o século XXI. A clonagem e a transgenia deixaram de ser uma prática que só existia na ficção para ser uma realidade dos métodos e das práticas científicas.
Vânia Massabni: Então, até onde pode ir o cientista, que no caso chamava Victor Frankenstein. O Frankenstein é o cientista ali. Até onde ele pode ir? O que ele está extrapolando e está fazendo as vezes de, entre aspas, “Deus”, que seria dar a vida ao novo ser. E essa vida a partir dos seus conhecimentos. O Victor Frankenstein, a hora que ele vai fazer as suas tentativas e montar o monstro, ele tá sempre escondido, ele é quase que um vilão da história, porque depois ele não aceita esse monstro. Então, quem é cientista que ora é Deus, ora é o inverso de Deus? Ele é Deus a hora que ele cria, mas ele deixa de ser absolutamente Deus a hora que ele rejeita o que ele criou e não cuida e não zela e não é o pai esperado pelo monstro. Então, que ser humano é esse afinal?
Narrador: “Quem pode conceber os horrores de minha labuta secreta, enquanto eu chafurdava na terra profana dos túmulos ou torturava animais vivos para animar o barro sem vida? Meus membros agora tremem e meus olhos se afogam com as lembranças; mas, na ocasião, um impulso irresistível e quase frenético me incitava a seguir em frente; eu parecia ter perdido toda a alma e a sensação, a não ser pelo desejo de seguir com essa busca” (Shelley, 2017, p.62).
Lívia: As professoras trabalharam com os alunos o tema da manipulação da vida por meio dos organismos geneticamente modificados, como um exemplo prático dos limites da ética científica e suas implicações na sociedade. A atividade chamou atenção para as tecnologias de manipulação genética disponíveis na atualidade e como essa prática é utilizada na criação dos alimentos denominados transgênicos. Foram distribuídas reportagens sobre o assunto entre os alunos e uma delas citava a “Comida Frankenstein”, termo que era bastante utilizado no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 para se referir a esses tipos de alimentos.
Vânia Massabni: A gente distribuiu ali uma coletânea de notícias com reportagens e uma delas era com a manchete “Comida Frankenstein”. Essa comida geneticamente modificada, já tá aí o termo “em uso”, do “Frankenstein”. Nesse contra ou a favor dos transgênicos, a gente teve alguns favoráveis, outros não. Mas, principalmente eles colocaram argumentos. E aí que tá, né? Essa prerrogativa do ensino de ciências ajuda a desenvolver a argumentação dos alunos, mas a argumentação embasada.
Lidia: A experiência didática relatada pela Vânia nos chama atenção para a importância de levar os debates da ética na ciência para fora dos muros da universidade. Muitas pesquisas sobre as consequências do consumo de transgênicos são realizadas desde que eles se tornaram realidade há trinta anos. O primeiro produto vindo dessa tecnologia, um tomate modificado para retardar o amadurecimento pós-colheita, chegou aos supermercados em 1994.
Suzi Cavalli: A relação do termo “Frankenfood”, eu acho que ele vem num linear que quando entra os organismos geneticamente modificados, os OGMS ou transgênicos, eles dão um susto, assim, no sentido que eles não são uma biotecnologia ligada a um processo.
Lívia: Essa que você ouviu é a professora Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina. A Suzi tem desenvolvido pesquisas sobre a utilização dos transgênicos e contou pra gente sobre o resultado dessas pesquisas, mas primeiro ela nos deu um panorama sobre o termo “Comida Frankenstein”.
Suzi Cavalli: Então, não se sabia o que ia acontecer em relação a esses novos produtos e imaginava também que, como você mexe com a genética em si, com genes diferentes, você literalmente tá mexendo com a vida. Então, dentro desse pressuposto, imagina que tu ia criar um Frankenstein, dentro dessa ligação com o personagem do livro. Porque você não tinha uma dimensão do que isso poderia estar ocorrendo. Onde você faz esse processo todo.
Lidia: Bom, mas afinal de contas o que são esses organismos geneticamente modificados? De uma forma bem geral, os primeiros organismos geneticamente modificados surgiram a partir de combinações das técnicas de biotecnologia e engenharia genética nos anos 1970. Essa combinação de técnicas permitiu que os cientistas fizessem a inserção de genes de um organismo em outro, o que dava novas características ao organismo receptor.
Lívia: Ainda sobre o termo “Frankenfood” ou “Comida Frankenstein”, a professora Suzi lembrou que essa terminologia parou de ser utilizada em meados de 2014. Uma suposição para a queda do uso desse termo estaria conectada com a relação política que ele acarretava, ou seja, o termo impactava no consumo do produto, afetando a maneira como as pessoas viam aquele alimento, pois faziam uma associação com a ideia de monstro. Mesmo com as ressalvas de parte da população, os alimentos transgênicos continuaram disponíveis e com cada vez mais apoio das grandes empresas, o que facilitou a disseminação tanto das técnicas, quanto da produção desses organismos, fazendo com que o consumo dos transgênicos se popularizassem no cenário mundial. Mas hoje, quase 40 anos depois do surgimento das primeiras plantas transgênicas, qual é o contexto do Brasil?
Suzi Cavalli: A gente, por exemplo, tem em torno de 95% de lavouras de soja só com sementes transgênicas. Então, dá para dizer que praticamente tudo que a gente consumir, que tenha um ingrediente derivado da soja, não é mais convencional, que seria aquele que usa agrotóxicos, mas não é orgânico. Então, pra gente se livrar da soja transgênica, só se utilizar soja orgânica hoje.
Lidia: Como a professora Suzi falou, o cenário atual do Brasil é da transformação do solo do que um dia foram campos e florestas, em terras para a produção de commodities, que são os produtos de origem agropecuária produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo.
Suzi Cavalli: A gente também percebe muito claramente a ligação entre o agrotóxico e o transgênico. Porque todo o transgênico que a gente tem no Brasil, ele tá ligado a um processo que é bom para o produtor, para empresa que tá vendendo, e muitas vezes vendendo casado. Quando começou com a Monsanto, a soja RR tinha o seu componente ligado a isso, então ela vendia um combo, vendia as duas coisas, esse é um lado econômico também, quer dizer, o agricultor comprava soja e teria que comprar o outro produto.
Lívia: A professora citou a soja RR e a Monsanto. A Monsanto é uma empresa multinacional líder na produção de sementes geneticamente modificadas e também na produção do herbicida glifosato. Em 2016 ela foi adquirida pelo grupo Bayer, em uma das maiores fusões de grandes empresas da história da Alemanha. A soja RR foi uma das primeiras sementes geneticamente modificadas a serem desenvolvidas. O gene inserido nessa semente produz uma proteína que torna a planta resistente ao herbicida glifosato.
Lidia: Existe uma relação econômica entre as empresas que atuam na produção dos transgênicos com a utilização de agrotóxicos. Segundo um estudo de 2022, as áreas destinadas à sojicultura no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina, os países agrícolas do Mercosul, somadas ocupam aproximadamente 557 mil quilômetros quadrados, o que é maior que o território da França. Só o Brasil abriga uma área equivalente à Alemanha (em torno de 358 quilômetros quadrados) para o cultivo de soja geneticamente modificada. Esse dado gera uma ligação direta da produção transgênica com o uso de agrotóxicos. Isso porque praticamente 90% dos agrotóxicos que circulam no Brasil são aplicados em cinco tipos de culturas: soja, milho, algodão, pasto e cana-de-açúcar, sendo que a soja transgênica, que tem por característica a maior resistência aos diversos tipos de agrotóxicos ocupam aproximadamente 56,9 milhões de hectares. Segundo estudo do marco da safra de 2022/2023 de grãos no Brasil, 25 anos depois da primeira aprovação do cultivo de transgênicos, o país está na segunda posição do ranking de países que mais utilizam transgênicos nas lavouras.
[trilha transição]
Lívia: A nossa última entrevistada, a nutricionista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Elaine de Azevedo, nos contou quais são os atores que agem nessa arena de riscos ligada aos transgênicos e agrotóxicos no Brasil. Ela fez uma análise a partir dos estudos sociológicos, mostrando como a relação de poderes é complexa e como diferentes atores contribuíram para a liberação dos transgênicos sem muitos obstáculos em nosso país.
Elaine de Azevedo: Então, nessas colisões a gente tem os protagonistas de risco, nesse caso as empresas de biotecnologia, e a mais forte de todas era a Monsanto, e também, no Brasil, podemos falar das associações dos grandes produtores de monoculturas para exportação, o chamado agronegócio, que junto com essas empresas se formam, assim, uma instituição patrocinadora que desejava sempre conferir legitimidade e endossar os transgênicos. São os protagonistas mesmo do teatro.
Lívia: Ou seja, é quem está mandando e criando as regras do jogo até agora.
Elaine de Azevedo: Temos também os portadores dos riscos, nesse caso as vítimas, os leigos, que sentem os custos dos riscos através das nossas enfermidades. Porque essa relação não foi exatamente bem-feita e os estudos sobre alimentação e impacto de contaminantes químicos merecem estudos de longo prazo, que não são realizados no Brasil e pouquíssimos no mundo.
Lívia: Enquanto não há incentivo ou disseminação destes estudos, fica cada vez mais complexo mostrar a relação entre o adoecimento de pessoas e o uso de agrotóxicos.
Elaine de Azevedo: Tem também os pequenos agricultores, que são portadores de riscos, que tiveram suas culturas contaminadas ou aqueles que não conseguiram manter o pacote químico do transgênico, e, tiveram então um impacto socioeconômico e até largaram a produção, porque não conseguiam manter as suas terras.
Lidia: Sobre esse impacto, apontado pela Elaine o que ocorre é que os pequenos produtores não conseguem acompanhar os custos do uso de plantas transgênicas. Além da tecnologia em si exigir um investimento alto, a manutenção da produção impõe o acompanhamento de legislações, regularização das terras e dos produtos, que envolve custos e burocracia. Isso leva a muitos produtores menores a desistir da atividade e vender suas terras, assim a concentração de terras acaba ficando na mão das grandes multinacionais. A partir de dados de 2020, disponibilizados pelo IBGE, vemos que apenas 1% dos proprietários rurais controlam praticamente 47,6% das terras agricultáveis do país. Esse é o grande problema da formação social e territorial do Brasil, que é a centralidade da propriedade privada e da concentração fundiária. Dados mais específicos sobre esse assunto podem ser consultados no livro Agrotóxicos e colonialismo químico, da Larissa Bombardi, lançado no ano passado.
Elaine de Azevedo: Outro elemento nessa arena é a chamada autoridade científica, que vai agir em nome da ciência. No caso dos transgênicos, essa ciência vai validar ou refutar os riscos e os mais fortes, favoráveis aos transgênicos, foram aqueles representados pelos cientistas contratados pelas empresas de biotecnologia. Então, eles fazem pesquisa a favor e também tinham os cientistas contra que questionaram os riscos e eram os cientistas basicamente independentes ou que trabalhavam para instituições de pesquisas públicas, como no caso das Universidades. Os dois tinham argumento científicos, mas a ciência de cada um tinha objetivos bem diferentes.
Lívia: Os estudos mais atuais apontam que a área destinada às plantações de commodities ligadas às sementes transgênicas só cresce, enquanto o espaço das agriculturas que realmente alimentam a população vem sendo reduzido ano a ano. O Brasil é um país que comemora safras recordes e está entre os maiores produtores agrícolas do mundo, mas ainda convive com a fome. E o mais paradoxal é que a zona rural é a área mais afetada, tendo um índice de 12% de fome severa, segundo o último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Penssan.
Lidia: As análises dos dados e dos fatos mostram que estamos diante de uma severa contaminação ambiental e humana e convivemos com a fome e a desnutrição. A maior parte da produção agrícola deixou de ser sinônimo de produção de alimentos e passou a ser um negócio lucrativo, concentrado nas mãos de empresas transnacionais, proprietários e especuladores. Esses são os atores principais nesse cenário que a professora Elaine citou e que são apoiados por seus representantes nas câmaras legislativas e nos palácios do governo.
Lívia: Resumindo, as tecnologias ligadas à criação de Organismos Geneticamente Modificados dizem muito mais sobre uma economia internacional, que subordinou globalmente a terra e a agricultura à indústria e aos bancos, do que serviu para a alimentar a população.
[trilha sonora – transição]
Narrador: “Num surto louco de entusiasmo, dei vida a uma criatura racional e devia ter assegurado a ela, no que estivesse ao meu alcance, sua felicidade e bem-estar. Esse era meu dever. […]. As formas dos meus amados mortos flutuam diante de mim, e me apresso para seus braços. Busque alegria na tranquilidade e evite ambições, mesmo que sob a aparente inocência de se distinguir na ciência e nas descobertas. Mas por que digo isso? Fui destruído por essas esperanças, mas outro pode ter sucesso” (Shelley, 2017, p. 227).
Lívia: Essas palavras de Vitor Frankenstein nos fazem voltar para aquelas perguntas que fizemos no começo do episódio: qual a relação da ciência com as consequências de seus atos na sociedade? Isso inclui suas relações não somente científicas, mas políticas e culturais. A professora Elaine, que já falou um pouco sobre a relação da ciência com as indústrias no caso dos Organismos Geneticamente Modificados, vai explicar melhor para nós quais são os desdobramentos dessas relações.
Elaine de Azevedo: A nutricionista Marion Nestlê revela em suas publicações esses vários interesses de pesquisa de especialistas dentro das universidades, com seus vínculos com empresas patrocinadoras de tais estudos, que lhes convém. Quando a ciência e os cientistas percebidos tradicionalmente como neutros são colocados dentro de uma disputa e isso, então, se caracteriza como um processo de politização da ciência. E também pode acontecer uma cientificização da política, ou seja, de se utilizar dela com interesses políticos. As empresas agroalimentares sabem muito bem que a melhor estratégia de marketing para o produto alimentar é ter um parecer científico sobre saúde. Por isso muitas pesquisas são realizadas com financiamento de instituições públicas e seus cientistas e as indústrias também apoiam financeiramente tais pesquisas. É bom dizer que nem sempre esse apoio significa estudos manipulados, mas quando uma corporação, cujo único objetivo é lucro, financia a ciência, então tem mais chance de se enfatizar os efeitos favoráveis aos interesses dessas empresas e provavelmente os resultados negativos tendem ser ignoradas em prol desse lucro.
Lidia: Sabemos que as consequências dessas práticas científicas para a sociedade, para além da discussão ética na ciência, que deve ser questionada, reflete na saúde da população, que muitas vezes não tem informação suficiente e sofre com os sistemas de saúde, que estão sobrecarregados. Então, a questão é que as pesquisas científicas antiéticas endossam um sistema que adoece e piora a qualidade de vida de parte da população. O esquecimento dos fatores de riscos ligados aos alimentos transgênicos pela mídia e o silenciamento dos agentes que poderiam alertar a sociedade sobre essa problemática acabam isentando os responsáveis dessa realidade.
Elaine de Azevedo: Então, resumindo, as controvérsias de pesquisa com transgênicos foram permeadas por interesses políticos, econômicos, os componentes sociais, éticos, por divisões científicas, institucionais, políticas, como eu falei já, e transnacionais, porque teve pressão de outros países para liberar aqui. O que aconteceu é que o tema foi colocado numa caixa preta da ciência por parte da coalizão vencedora e mais poderosa desse debate, que a gente já sabe quem é, né? Então, as instituições que se posicionaram a favor da liberação da semente geneticamente modificadas formaram alianças mais articuladas e foram capazes de promover a liberação oficial do plantio da comercialização e essa colisão, ela classificou as posições contrárias aos transgênicos como ideológicas e as suas próprias como científicas. Então, assim se encerraram os debates e o Frankenfood foi enterrado, mas como todo Frankenfood, ele continua vivo. Porque os riscos não foram dissipados, foram esquecidos.
Lívia: Diante desse cenário, que não parece ser muito animador, nós nos perguntamos quais seriam os caminhos para achar soluções. No campo da engenharia de bioprocessos e biotecnologia, os pesquisadores têm realizado uma nova técnica de edição genética, denominada de Técnica de Melhoramento de Precisão (Timp), gerando produtos que não estão sendo considerados mais como transgênicos e por isso estariam dispensados de todas as etapas de liberação previstas na Lei Nacional de Biossegurança. Há várias técnicas de edição genéticas disponíveis, elas consistem em cortar o DNA em um ponto específico. No Brasil, o mais utilizado tem sido o método CRISPR, que foi aplicado em uma espécie de soja desenvolvida na Embrapa. Nesse caso, os pesquisadores silenciaram o gene, ao cortar o DNA em um ponto específico e tornaram essa variedade de semente resistente à seca.
Lidia: As técnicas de edição gênica são a promessa da vez, mas as coisas não são tão simples assim. Os produtos gerados por ela também precisam ser regulamentados, pois não possuem um histórico de segurança, por ser ainda uma técnica nova. Os pesquisadores não têm todos os dados sobre os possíveis efeitos colaterais, como quando surgiu a técnica que gerou os OGMs. A alteração genética da técnica CRISPR, apesar de ser pontual, pode também influenciar em outros aspectos que não sabemos quais são. Além de um possível efeito adverso dessas variedades na interação com os diferentes seres vivos no meio ambiente, essa técnica ainda continua com a lógica de concentração de patentes na mão de poucas empresas, como também aconteceu com as sementes transgênicas. Portanto, esse ainda é um modelo que historicamente gera fortuna para poucos e torna os agricultores dependentes das grandes corporações. Então, onde fica a ética científica nessa história? Ela acaba sendo barrada pela mediação de grandes corporações?
Elaine de Azevedo: Eu acho que a ética científica é de alguma forma barrada pela própria estrutura da ciência e que foi de alguma forma romantizada por nós essa estrutura, ela é barrada também pela falta de reconhecimento que cientistas são seres humanos que desejam financiamento, poder e reconhecimento e que agem de acordo com seus valores humanos, que são bem variados, como a gente sabe.
Lívia: Então, não adianta a gente pensar que a próxima técnica de edição gênica vai resolver todos os nossos problemas. Nós temos que questionar qual será o comprometimento dos cientistas com um projeto de agricultura e de alimentação mais justa, socialmente e ambientalmente engajadas. Eles vão ficar do lado das empresas, que pagam e financiam suas pesquisas ou vão se posicionar ao lado dos menos favorecidos?
Lidia: Nossa entrevistada ressalta que uma das preocupações da sociologia do conhecimento é enfatizar a relação entre o conhecimento científico e a ordem social, para dessacralizar a imagem da ciência. Os autores dessa área mostram que o conhecimento científico é um sistema de convenções socialmente estabelecido e reproduzido.
Elaine de Azevedo: O cientista, como qualquer outro ator social, é alguém que se utiliza de estratégias persuasivas pra garantir a aceitação dos seus enunciados, e também pra garantir o financiamento pra ele continuar produzir. Então, a imagem dos cientistas ainda é relacionada a pessoas discretas, silenciosas, mas a pesquisa científica é altamente competitiva, compete por atenção, por reconhecimento e por financiamento.
Narrador: “Aprenda comigo – se não por meus preceitos, ao menos pelo meu exemplo – quão perigosa é a aquisição de conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite” (Shelley, 2017, p.61).
Lívia: Na obra de Mary Shelley, o cientista Victor Frankenstein, ao se deparar com a sua criação, o monstro sem nome, é tomado pelo horror e foge, rejeitando o resultado do seu trabalho. A criatura, ao se sentir rejeitada por seu criador e pela sociedade, se torna violenta, causando a morte de várias pessoas próximas ao cientista. Podemos dizer que a obra funciona como uma fábula moderna dos riscos do orgulho intelectual desmedido. O cientista protagonista do livro representa uma ciência egoísta, que desafia a natureza, sem se preocupar ou se responsabilizar pelas possíveis consequências. De maneira mais ampla, essa fabulação nos chama a atenção para os impactos do progresso científico na sociedade e a responsabilidade dos cientistas diante de suas criações.
Lidia: A relação do cientista com sua criação monstruosa, feita a partir de restos mortais, inspirou a denominação do termo Frankenfood, quando os alimentos transformados geneticamente começaram a fazer parte do nosso dia a dia. Se fizermos uma relação com a história do livro, então, qual será o destino dos alimentos transgênicos, se considerados também como uma criação da ciência que precisa de alguma maneira ser guiada e não deveria ser abandonada, como foi o monstro criado por Victor Frankenstein?
[trilha de transição]
Lívia: Bom, neste episódio a gente apresentou o que tem guiado o desenvolvimento dos Organismos Geneticamente Modificados no Brasil, e vimos que ele tem acompanhado, em sua maioria, as demandas das grandes empresas e dos grandes produtores. No atual cenário, a ética científica e a responsabilidade dos cientistas por esses produtos parecem ter ficado um pouco pra trás. Diante de todos os dados que mostramos e que tem permeado o contexto da utilização das técnicas científicas para a obtenção dos alimentos transgênicos, vimos que ainda não há, por parte da ciência, uma busca expressiva por modos de produção mais saudáveis, que garantam os cuidados com o ambiente, com a saúde do consumidor e, principalmente com o acesso de comida pra todas as populações.
Lidia: Por isso esse debate é tão importante. A literatura tem o poder de nos fazer vivenciar, no mundo ficcional, possibilidades inimagináveis, e assim despertar nosso senso crítico diante da realidade. A ficção científica de Frankenstein continua nos instigando a não perder de vista as preocupações relacionadas aos possíveis impactos do progresso científico na sociedade.
[corta trilha]
Lívia: Esse episódio foi produzido, roteirizado e apresentado por mim, Lívia Pereira.
Lidia: E por mim, Lidia Torres. A revisão é de Mayra Trinca e Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. O material foi gerado como trabalho da disciplina “Teorias e Métodos da Ciência” e também contou com a participação da aluna e jornalista Mariana Ribeiro. A disciplina foi ministrada pelas professoras Flávia Consoni e Janaína da Costa e o estagiário Alisson Silva, no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/Unicamp.
Lívia: Os trabalhos técnicos são de Daniel Rangel e as trilhas sonoras do Free Sound.
Lívia: O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp.
Lidia: Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts preferida. Procure a gente nas redes sociais. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e obrigado por escutar!
Lívia: O Oxigênio já tratou desse tema dos transgênicos no episódio 72, quando falamos sobre os 20 anos de pesquisas com transgênicos no Brasil e também no especial da Semana de Ciência e Tecnologia de 2016, quando entrevistamos a pesquisadora Marcia Tait, que falou sobre o papel das mulheres na agroecologia e a resistência delas aos cultivos transgênicos. Ouça lá depois.
Referências Bibliográficas
BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.
Este é o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, baseada na publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”. O termo tratado neste episódio é Racismo Reverso. A partir do que a professora da UFRJ Fátima Lima escreveu no dicionário, e de entrevistas realizadas com a diretora executiva da ONG Koinonia, Ana Gualberto, da jornalista, diretora da consultoria Ser Antirracista, Paula Batista e do advogado Thiago Amparo, este podcast traz a resposta à pergunta: Racismo Reverso existe?
_____________________
Daniel Faria: Em janeiro deste ano, no estado de Alagoas, um homem negro virou réu em ação de injúria racial movida por um cidadão italiano branco. O italiano prestou queixa-crime após ser chamado de, entre aspas, cabeça europeia e escravagista, pelo réu, e teve a denúncia aceita pelo Ministério Público daquele estado, com base na lei N° 14.532, de 2023, que tipifica o crime racial. Porém, no artigo de número 20 desta lei consta que o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
Tatiane Amaral: Essa nota foi publicada no portal de notícias antirrascista Notícia Preta. Os comentários que seguem a nota são bastante indignados, como não poderia deixar de ser. Um disse: “só faltou o italiano ser minoria para a denúncia ter sentido, né?”. Outra pessoa afirmou: “Nada a ver o uso dessa lei para defender colonizador”. Segundo a defesa do homem negro, “Ao usar a lei para punir um homem negro de suposto racismo cometido contra um homem branco, de origem europeia, a ação admite a existência do ‘racismo reverso’. Isso representa uma verdadeira aberração jurídica, nas palavras do advogado”.
Daniel: Taí, a gente chegou ao tema deste episódio: Racismo reverso. Mas, será que isso existe? Faz sentido essa expressão cada vez mais propagada por vozes racistas ou de extrema direita no Brasil e em outros países? Eu sou o Daniel Faria.
Tatiane: E eu sou a Tatiane Amaral. E esta é a série Termos Ambíguos, que traz a cada episódio a explicação de uma categoria das muitas popularizadas pelos discursos da extrema direita em anos recentes. Essas categorias são analisadas nos verbetes da publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”.
Daniel: Esta série é uma produção do Observatório de Política e Sexualidade, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, e do podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp.
Vamos falar sobre racismo reverso, mas não dá pra falar desse assunto sem antes falar de RACISMO, que o dicionário Aurélio define como preconceito e discriminação direcionados a alguém em razão de sua origem étnico-racial. Embora essa definição seja aparentemente neutra, ela se refere à opressão e à discriminação que resultam da ideologia ou crença na superioridade da raça branca sobre as demais. Ou práticas de subordinação e exclusão baseadas na cor da pele ou origem étnica das pessoas “não brancas”. Ou seja, o questionamento do racismo é o questionamento de uma longa história de opressão, desigualdade e injustiças sócio-raciais.
Tatiane: Há muito tempo as pessoas negras e de outras etnias têm interrogado de frente as teses da superioridade branca que está na origem da escravidão moderna. O combate ao racismo é antigo, e parece não ter fim, porque o racismo parece não ter fim. Desde o século 18, pelo menos, a crítica ao racismo elaborada por autores e autoras negras tem sido fundamental para nutrir a luta antirracista em todo mundo. São exemplos o ex escravizado Olaudah Equiano que lutou pela abolição da escravidão na Grã Bretanha, no século 18, assim como Frederick Douglas e Luis Gama, intelectuais abolicionistas do século 19, nos EUA e no Brasil. Mais perto de nós, temos o movimento Black Power e os Panteras Negras, nos Estados Unidos, mas também o Movimento Negro Unificado no Brasil, cujas vozes intelectuais mais conhecidas foram Abdias do Nascimento e Lelia González. Não fossem essas lutas, estaríamos ainda mais longe de alcançar a igualdade racial.
Daniel: É Tati, mas nem todos compartilham a ideia de que pessoas negras – ou de outras etnias tenham os mesmos direitos que as pessoas brancas. Isso em relação à formação escolar, emprego, moradia, bens, acesso à saúde, à educação superior e tudo o mais que tem sido garantido às pessoas brancas desde sempre. Na verdade, foi quando se anunciaram medidas do estado e de outras instituições para promover a igualdade racial que surgiu essa acusação de Racismo Reverso.
Tatiane: Conversamos com Ana Gualberto, que é mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia e História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela também é diretora Executiva de Koinonia, organização cuja missão é mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar serviços a grupos histórica e culturalmente vulneráveis e pessoas em processo de emancipação social e política. Segundo ela:
Ana Gualberto: Racismo reverso não existe é uma grande falácia quando a gente começa a pensar num racismo, numa possibilidade de aplicar a condição do racismo de uma forma inversa para pessoas que não sejam negras ou de povos originários. A gente vai pensar que o racismo é um sistema de controle e de diminuição da humanidade de pessoas não brancas, então a gente tá partindo de um pressuposto que existe o ser humano e existem uns não humanos. Então como que a gente vai aplicar isso de forma reversa? Só se a gente será se a humanidade e voltar a todos os processos para que os povos negros os povos originários se sentissem num processo de superioridade com relação aos caucasianos e isso não tem condições de acontecer. Não tem condições da gente aplicar com pessoas brancas, né, com essa parcela da sociedade, tudo que aconteceu historicamente, socialmente com essas populações não brancas. É impossível.
Tatiane: A professora Fátima Lima é antropóloga e professora associada do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Centro Federal de Educação Tecnológica, também do Rio. Ela foi a autora do verbete Racismo Reverso no Dicionário de Termos Ambíguos, no qual contou a história dessa categoria, mostrando que de fato surgiu no âmbito dos movimento anti racistas norte americanos, para depois ser desfigurada por setores da sociedade que se opunham a demandas por direitos civis e justiça racial. Vamos ouvir esse trecho do texto na voz de Simone Pallone.
Simone Pallone: “No início dos anos 1960, o termo racismo negro foi usado quase que exclusivamente pela comunidade negra para nomear questões internas ao movimento negro envolvido na luta por direitos civis. Por exemplo, discussões sobre se a comunidade negra deveria sempre votar num candidato negro, ou se ser negra ou negro era condição imprescindível para que uma pessoa merecesse o voto da comunidade. A pergunta que se fazia era: não será isso uma outra forma de racismo?
No final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, porém, houve uma virada no uso do termo. Isso aconteceu por conta da intensificação das revoltas contra o racismo. Essas mobilizações já começavam a alterar as relações de poder entre pessoas brancas e negras. A partir desse momento, tanto nas relações cotidianas quanto na mídia, o termo “racismo reverso” passou a ser usado por pessoas brancas contra militantes negras e negros, principalmente do movimento black power”.
Daniel: No Brasil, esse termo apareceu mais tarde, em parte motivado pelas primeiras políticas de reparação racial. A Constituição de 1988, por exemplo, aprovada no ano em que a abolição formal da escravidão completava 100 anos, adotou princípios de igualdade e não discriminação, assim como o direito da população quilombola às terras que ocupavam. Mais tarde,em 2003, foi criado o Dia Nacional da Consciência Negra, em 2010 foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial e, em 2012, foi sancionada a Lei de Cotas para o Ensino Superior.
Tatiane: A partir dessas transformações, pessoas brancas passam a recorrer à acusação de “racismo reverso” sempre que seus privilégios se veem questionados ou diminuídos. Um caso recente que teve grande visibilidade foi o ataque ao programa de trainees da rede de lojas Magazine Luíza, criado em 2021 para capacitar pessoas negras. A iniciativa gerou críticas e debates na mídia, nas redes sociais e até mesmo no âmbito jurídico, tendo sido qualificada por várias vozes como racismo reverso. Ou seja, um programa que seria discriminatório das pessoas brancas. Houve até quem defendesse que poderia ser considerado anticonstitucional por supostamente violar o artigo Quinto da Constituição, que trata de violações aos direitos e liberdades fundamentais.
Daniel: O programa da Magalu foi denunciado ao Ministério Público do Trabalho. Nas denúncias, alegava-se que as pessoas brancas haviam sido discriminadas pelo edital do programa. A Defensoria Pública da União, que naquele momento era dirigida por uma pessoa indicada pelo então presidente Bolsonaro, abriu uma ação contra a empresa, acusando-a de estar fazendo “marketing de lacração”.
Tatiane: É, mas apesar do desgaste, prevaleceu a razão, ou seja o princípio de que o racismo está sempre associado a privilégios. Em reportagem publicada no site Conjur, a advogada Christiany Pegorari Conte, professora de Direito e Processo Penal da PUC-Campinas, argumentou que o Programa Magalu não tinha como objetivo impedir outras raças ou etnias de serem contratadas, mas sim, de corrigir a desigualdade racial de acesso à oportunidades de trabalho. Desde então, outras empresas têm oferecido programas semelhantes voltados 100% para pessoas negras ou com parte das vagas para pretos e pardos.
Daniel: Mesmo que as ações ou políticas afirmativas sejam fundamentais, justas e urgentes, há gente que não concorda com elas. O caso da Magalu é um exemplo disso, provocando, inclusive, uma busca intensa pelo termo Racismo Reverso nas plataformas da internet. A gente sabe que há muitos casos em que pessoas negras são preteridas em vagas de emprego, mas ninguém se escandaliza. E quando surge um programa de reparação dessa injustiça, as denúncias explodem. É muito difícil aceitar isso.
Tatiane: Outra situação mais ou menos recente aconteceu numa edição do Programa Big Brother Brasil, da Rede Globo. Uma participante negra foi acusada de praticar RACISMO REVERSO porque chamou a colega de casa de “desbotada e sem melanina”. Esse caso, assim como o da Magalu, são citados no verbete do Dicionário de Termos Ambíguos.
E aí eu me pergunto: é importante saber o que diz a Legislação sobre Racismo? O crime de racismo previsto na Lei 7.716, de 1989 pode ser aplicado a uma pessoa negra? Como essa questão legal é tratada no Dicionário de Termos Ambíguos, Daniel?
Daniel: O dicionário relembra que a partir dos anos 1980 a ideologia da democracia racial começou a ser contestada mais sistematicamente pelos movimentos negros no Brasil. Expostas as realidades do racismo no país, o passo seguinte foi consolidar leis e políticas públicas de reconhecimento, reparação e restituição às comunidades negras e seus descendentes. São exemplos a Lei 7.716, de 1989, conhecida como a Lei Caó, e a Lei 9.459, de 2013. Essas duas leis ampliaram as definições de outra já existente desde 1951, que era a Lei Afonso Arinos, que tratava dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Entre um momento e outro, foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, que é a Lei 12.288, de 2010. Ao contrário dos dispositivos legais anteriores, o Estatuto Racial não é punitivo, mas reconhece a desigualdade racial como estruturante e estabelece diretrizes de políticas para sua correção e reparação às comunidades negras.
Tatiane: O fato é que o Brasil é bem amparado legalmente. Mas como observa Ana Gualberto, existe um abismo entre ter a lei e aplicá-la:
Ana: Do mesmo jeito que o Brasil é um país maravilhoso em confecção de leis, em construção de leis, ele é absurdamente do não cumprimento das leis. A gente não tem pessoas cumprindo sentença de crime de racismo. A gente não tem uma lei que, inclusive foi ampliada agora a lei caô, né para injúria racial, mas essa lei, ela não é aplicada e a gente não consegue aplicabilidade da legislação desde a sua base, quando a gente chega nas delegacias para fazer o registro de um crime de racismo, um crime de injúria racial, no crime de intolerância religiosa, de ódio religioso. A gente já tem ali uma barreira para o registro disso, então o processo de judicialização, ele praticamente inexistente no Brasil com relação a isso. O que muitas vezes a gente vai conseguir quando são casos que envolvem comunidades é uma recomendação do Ministério Público é uma entrega de cesta básica, só que isso não resolve. Na organização onde eu trabalho a gente monitora crime de intolerância e ódio religioso. A gente faz esse monitoramento desses casos e a gente vê, ou não, a não judicialização desses casos, como isso não avança no processo, então o que que você denuncia.
Daniel: É incrível ouvir essa fala da Ana porque certamente não adianta ter uma legislação que não é implementada, fiscalizada, e que não exige alguma reparação a quem pratica o crime de racismo. Esse processo só dificulta o combate ao racismo. Mas temos que vislumbrar alguma possibilidade de mudança.
Ana Gualberto: E aí, pensando na questão da lei de cotas, quando a lei de cotas é criada, ela é criada numa perspectiva transitória. Perspectiva da implementação da lei de cotas é que haja uma melhora na qualidade de ensino público e no processo de desigualdades raciais dentro do país para que a gente ofereça as mesmas condições e que a gente vire de um momento e fale que realmente não são necessárias cotas porque a gente tem as mesmas oportunidades, só que isso não avança. Enquanto isso não avançar. Vai ser necessário a gente ter cota sim vai ser necessário e a gente precisava ampliar, inclusive é muito complexo no Brasil
Daniel: Ana lembra por exemplo que, muitas vezes, pessoas brancas usam as cotas de concursos públicos dentro das Universidades de forma fraudulenta.
Tatiane: Apesar dos possíveis desvios do objetivo, e de pessoas fraudarem o sistema de cotas, as políticas afirmativas são necessárias para começarmos a corrigir essa distorção de direitos na nossa sociedade. A população negra no país é de 55%. São pessoas que se auto identificam como pretas ou pardas. E essa identificação é, por sua vez, fruto dos movimentos de valorização da cultura ancestral afrodescendente, das políticas públicas de reparação, das leis contra o racismo e do conhecimento produzido nas universidades sobre negritude. A sociedade cada vez mais valoriza a cultura negra como uma cultura plural, diversa e que acolhe outras. Vemos mais pessoas negras fazendo sucesso, ocupando cargos importantes, se formando nas universidades, e essas conquistas fazem toda a diferença.
Daniel: Também conversamos com a jornalista Paula Batista, mestra em Divulgação Científica e Cultural, coordenadora de um projeto muito interessante: a SerAntirracista, uma consultoria sobre a qual ela nos contou muitas coisas.
Paula Batista: Bom, a Ser antirracista é uma consultoria de diversidade, equidade e inclusão racial com foco no letramento racial e na educação antiracista e voltado pra ação, então todas as nossas iniciativas buscam fazer com que a pessoa possa refletir sobre os temas e, a partir disso, também agir no seu cotidiano, aonde está, contra o racismo. Nós atendemos escolas, empresas.
Daniel: A Paula nos disse que a consultoria também é certificadora do Pacto de Promoção da Equidade Racial, iniciativa de uma associação do mesmo nome que se propõe a implementar um Protocolo ESG Racial para o Brasil. ESG pra quem não sabe, não conhece, é a sigla em inglês para Ambiente, Social e Governança, um modelo a ser aplicado pelas empresas privadas.
Paula: “Então o pacto, ele nasceu no ano de 2022, e chama pacto de promoção da equidade racial. Ele vai olhar tanto para os níveis de diretoria, gerência e liderança. E a partir daí então o trabalho da certificadora é verificar se esses dados que foram inseridos na plataforma são reais mesmo. A gente também calcula as ações que essa empresa está realizando, tanto de ações afirmativas internas quanto de investimento social privado para a comunidade, e para que acelere essa equidade racial dentro da empresa.
Tatiane: Como diz a Paula, sem essa iniciativa a probabilidade de se ter uma equidade racial dentro dos níveis hierárquicos das empresas no Brasil era de 100 anos, e com o pacto há a expectativa de alcançar esse objetivo em 20 anos nas empresas. O que já é um avanço.
Daniel: A Paula destaca que o pacto também está criando um índice focado nas mulheres negras dentro das empresas.
Paula: A gente sabe que existe uma interseccionalidade entre raça e gênero. É possível identificar que as mulheres negras sempre estão em desvantagem, os piores salários e piores níveis hierárquicos, né? Então, a gente tem mulheres brancas com maior número de formações nas universidades e em seguida vêm as mulheres negras. Então, já foi o tempo em que se acreditava que nós não tínhamos formação para ocupar esses cargos. Hoje, nós já temos formação, mas as empresas precisam amadurecer esse olhar e refletir para que haja a contratação dessas mulheres nos cargos, principalmente de liderança.”
Tatiane: E essa experiência do pacto leva a outras ações, serve de estímulo. Como comenta nossa entrevistada, ver empresas privadas de sucesso adotando ações para a promoção da equidade racial estimula a população negra a estudar, se formar e lutar por posições melhores. Também mobiliza a cobrança de outras instituições.
Paula: Então, tem alguns movimentos de analisar a questão das cotas no serviço público. Alguns estados já têm isso implementado. O que eu digo é que é um caminho sem volta. Então você já tem esse movimento criado, já tem essas ações que já estão sendo feitas, eu acredito que cada vez mais isso vai sendo amadurecido e, sim, as empresas que já têm esse compromisso social, de responsabilidade social, vai cobrar também das instituições públicas esse compromisso.
Daniel: A educação antirracista e a luta antirracista são modos de dar visibilidade à brutalidade do racismo e nos fazem entender que não dá pra dizer que não tem racismo no país. Já o racismo reverso, voltando ao ponto principal do episódio, não tem como existir. Aqui ouvimos a Paula de novo:
Paula: É impossível que a gente possa conceber uma ideia como essa porque, para que o racismo fosse, vamos dizer, reverso, a gente precisaria mudar totalmente a nossa história. Então, os africanos escravizassem os europeus e trouxessem para cá. E aí se os europeus brancos fossem escravizados e fosse feita toda a barbaridade que foi feita e toda a violência que foi feita. E aí, a libertação também, da forma como foi feita, sem nenhum direito, sem nenhuma garantia de vida e trabalho, sem nenhum Direito Civil garantido para essa população. E nenhuma reparação humana feita pra essas pessoas. E aí essas pessoas assim vivenciariam uma sociedade em que elas são excluídas. Isso seria um cenário de racismo reverso. Então, a gente teria que voltar na história para que existisse isso, por que o que a gente fala isso? Porque as pessoas entendem o racismo como uma discriminação simples, e o racismo não é isso.
Tatiane: Ana Gualberto complementa falando do papel dos meios de comunicação na educação da sociedade e na luta por espaços iguais para todes.
Ana: Eu sou uma pessoa muito otimista, tá? Eu acredito que eu não vou alcançar isso, mas espero que outras gerações alcancem, mas eu quero trazer uma questão que eu acho que a gente tem que estar muito atento, né? Eu tenho 47 anos e eu lutei muito. Eu queria muito ser Paquita, mas eu não podia ser paquita, né? Nunca fui paquita. Vamos pensar o que a gente tem visto hoje. Quando a gente abre a televisão, os meios de comunicação, a gente vai ver pessoas negras, gays, e isso é um avanço, porque a gente lutou muito para isso.
Tatiane: Nossas entrevistadas deixaram claro que o racismo nunca está dissociado das estruturas de poder, ou seja a uma suposta hierarquia racial, na qual a raça, entre aspas, superior tem privilégios e as demais não têm direitos. É por isso que a acusação de “Racismo Reverso” é usada também contra os povos indígenas do Brasil. Por exemplo, na discussão sobre o Marco Temporal, em que são acusados de quererem ou usufruírem de “privilégios” territoriais. Uma acusação que apaga os séculos de massacres e violência contra esses povos.
Daniel: E pra gente encerrar esse episódio, é interessante voltar a reflexões da Paula ainda sobre a falácia do racismo reverso pois ela se relaciona com as críticas e propostas da Ana sobre papel da comunicação nos processos de luta contra racismo nas suas várias manifestações.
Paula: Não há possibilidade de existir na nossa sociedade. Então eu falo que é uma desonestidade quem traz esse tipo de informação, e as pessoas acabam aceitando isso por conta da desinformação. Mas também de uma ideia dentro da nossa sociedade que é o medo das pessoas de perderem o espaço. A gente observa, né, nas dinâmicas do racismo que as pessoas temem que elas percam espaço. Então elas querem sempre e verem melhores do que outras. As pessoas negras terem os mesmos direitos que elas, não são regalias, são os mesmos direitos que as pessoas brancas, ela começa a se sentir ameaçada.
Daniel: Ou seja, a expressão racismo reverso é mesmo uma invenção perversa. Quando ouvir esse termo, ou melhor dizendo, essa acusação, pare e pense: De onde ele vem? Para que que serve? A quem beneficia?
Tatiane: E antes de terminar, temos que fazer uma atualização sobre o caso tratado como injúria racial que apresentamos no início desse episódio. Só pra lembrar, um homem negro foi acusado de praticar racismo reverso ao chamar, por uma plataforma de mensagem, um italiano branco de “cabeça branca, europeia e escravagista”. O caso ainda está em julgamento, mas pedimos professor da FGV SP Thiago Amparo, um esclarecimento sobre o tema. Antes dele tratar especificamente do caso, ele reforçou o que já comentamos aqui sobre o racismo reverso. Vamos ouvir.
Thiago Amparo: Quando a gente fala sobre racismo, a gente tem que, primeiro, ter em mente a ideia principal do racismo que é fundamentado em teorias hierarquizadas de poder, ou seja, que alguns grupos em razão de sua raça, cor, etnia, seriam melhores em algum sentido, mais evoluídos, mais desenvolvidos ou algo parecido, do que outros grupos. Quando a gente tem uma história de séculos de escravidão, você tem história de séculos de desigualdade racializada, desde violência policial até outras desigualdades que compõem esse sistema de racismo.
Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, o que a gente está falando é o seguinte: que não existe racismo reverso nesses dois sentidos ou seja, não existem teorias que coloquem pessoas brancas historicamente como subalternas, como menores, como inferiores, né? E também não existe uma história onde você tenha, sistematicamente, pessoas que hoje, em razão de sua raça e cor, são consideradas privilegiadas em algum sentido. Não existe uma história de opressão sistemática contra pessoas brancas, né?, como a gente tem com relação a pessoas negras e outros grupos. Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, tá falando que não existem essas duas coisas.
Daniel: Pois é, mas quando uma acusação de racismo reverso chega a um tribunal, como mostramos no início deste episódio, como pode ou deve ser tratada, Thiago?
Thiago: Quando a gente fala de crimes como injúria racial, como o próprio crime de racismo, a gente tem, pela lei, a ideia de que vai punir a ofensa à honra, seja de uma pessoa específica ou de um grupo como um todo. Então, quando eu xingo uma pessoa negra com um insulto racista, que que eu tô fazendo? Eu tô xingando aquela pessoa específica e também posso estar ofendendo um grupo como todo, né? Então, muitas vezes, grupos mais conservadores tentam se valer dessa legislação de injúria racial e de racismo para dizer o seguinte: “Olha, pessoas brancas também podem sofrer racismo”. E aí seria o racismo reverso, porque a sua honra poderia ser violada em razão de sua raça e cor. E aí os tribunais muitas vezes tem se discutido, olha, será que seria plausível, juridicamente, você dizer que há um caso, por exemplo, de injúria racial quando uma pessoa branca é xingada por uma pessoa negra? E aí essa pergunta fica no ar.
Tatiane: É de uma situação como essa que estamos tratando, de um homem negro proferir palavras que ofenderam um homem branco. O professor Thiago continua os esclarecimentos.
Thiago: O caso que tá pendente agora e que vai ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, é um pedido de habeas corpus, onde um homem negro é que é acusado de injúria racial, não contra ele, mas contra o homem branco, e ele tá dizendo: “olha eu não cometi nenhum crime aqui, né?”. E aí a gente pode entender de dois jeitos. De um lado que, não, vale para todo mundo, no sentido de que se é racismo, seria esse injúria racial e o crime de racismo seria também possivelmente feito por pessoas negras, quanto por pessoas brancas, porque isso significaria simplesmente uma discriminação de um grupo em relação a outro, não importa a história desses grupos. Ou a gente pode dizer não, não dá, porque racismo reverso no sentido de que essa legislação foi justamente pensada para proteger grupos historicamente marginalizados, foi justamente pensada para coibir esse tipo de teoria que eu falei que teorias de superioridade de um grupo em relação ao outro, que não existe em relação a pessoas brancas, não têm teorias que vão inferiorizar pessoas brancas de forma sistemática como há e houve na história contra as pessoas negras e também você pode dizer, essa lei só faz sentido se a gente aplica para proteger grupos historicamente discriminados, porque justamente é para remediar essa história de discriminação, né?
E aí pode-se tem especialmente juristas negras, sempre enfatizado que quando a gente fala de injúria racial quando a gente fala de crime de racismo, a gente está falando que não é um crime que ele existe no vácuo histórico, né? São crimes que na verdade existem dentro de um contexto e o contexto é de uma histórica discriminação para pessoas negras e o contexto de teorias que impõem essa superioridade pessoas brancas com relação às pessoas negras, é então não daria para a gente aplicar como se fosse dois lados da mesma moeda. De um lado crimes praticados por pessoas negras por pessoas brancas e o inverso de pessoas brancas pessoas negras, porque o que a gente tá tentando coibir aqui é que esse sistema de poder racializado se perpetue. E aí esse caso agora, pendente no Superior Tribunal de Justiça é crucial para poder dizer, olha que se a injúria racial e o crime de racismo, que hoje a injúria racial também é um tipo de crime de racismo, se esses crimes eles protegem grupos historicamente discriminados, ou eles também vão proteger inclusive pessoas brancas contra críticas, né? Porque você pode também, em alguma medida se expandir o conceito dos crimes de injúria racial racismo, toda vez, por exemplo, que alguém escreve uma coluna de jornal criticando pessoas brancas e privilégio branco, sei lá em relação à violência policial, pode ser objeto de uma ação judicial, né? Então justamente isso pode servir como uma arma para que seja utilizado para silenciar pessoas negras, uma legislação que originalmente tinha como ideia central coibir justamente o racismo no país.
Tatiane: Este foi o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação de Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de comunicação social – Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. Tivemos também a colaboração de Simone Pallone, na leitura de um trecho do Dicionário. As entrevistas e o roteiro foram feitos pelo Rafael Revadam, jornalista e doutorando em Política Científica e Tecnológica e pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio. A revisão do roteiro foi feita pela Tatiane Amaral, pela Nana Soares, que é jornalista e mestre em Gênero e Desenvolvimento da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.
Tatiane: Você pode nos seguir pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para [email protected]. O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues.
O Oxigênio apresenta um novo podcast parceiro, o Fish Talk. Desta vez tratando de peixes. Isso mesmo, um podcast sobre peixes! The Fish Mind, ou A Mente do Peixe, é um programa desse podcast com foco na capacidade que esses animais têm de sentir dor e experimentar outros estados emocionais. Vamos ouvir também sobre suas habilidades cognitivas nos episódios desse programa. A ideia é trazer essas informações importantes em um diálogo informal de poucos minutos. O programa geralmente é composto por episódios independentes, mas temas que precisam de mais aprofundamento são apresentados em mais de um episódio. O Fish Mind faz parte de um projeto que é fruto de uma colaboração do Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) no Brasil com a FishEthoGroup, uma associação sem fins lucrativos que trabalha em prol do bem-estar dos peixes, preenchendo lacunas entre a ciência e as partes interessadas no setor da aquicultura, entre eles: produtores, certificadores, comerciantes, ONGs, decisores políticos e consumidores. A entidade foi criada em 2018 e está sediada em Portugal.
Conheça agora o The Fish Mind Programme e acompanhe todos os episódios. Você vai descobrir muitas curiosidades sobre peixes!
TRILHA SONORA
João: Sabia que, assim como os seres humanos, os peixes podem ter uma boa memória de longo prazo?
Carol: Neste episódio do programa A Mente do Peixe, vamos falar sobre a capacidade dos peixes de
João: E eu sou o João Saraiva, e começa agora o episódio Habilidades dos peixes: Memória!
TRILHA SONORA
Carol: Você já ouviu falar que os peixes têm uma memória de apenas três segundos? Esta é uma crença popular muito difundida. Mas, na verdade, há evidências científicas indicando que, ao contrário dessa crença, os peixes podem expressar uma boa memória de longo prazo que pode durar meses! E isso não é novidade na ciência. Existem pesquisas sobre isso publicadas há cerca de 34 anos.
João: Este é um estudo muito interessante chamado ‘Long-term memory and recognition of another species in the paradise fish’, que foi publicado em 1989. Os pesquisadores mostraram que um pequeno peixe popularmente conhecido como peixe paraíso (Macropodus operculari) foi capaz de memorizar um peixinho dourado (Carassius auratus) por até três meses!
Carol: Para demonstrar isso, os pesquisadores avaliaram o comportamento exploratório do peixe paraíso em relação ao peixinho dourado. Quanto menos o peixe paraíso explorava o peixinho dourado, mais os pesquisadores consideravam que ele já estava acostumado a ele e, portanto, se lembrava daquele peixinho dourado. E é interessante notar que o peixe paraíso conseguiu memorizar um indivíduo de uma outra espécie!
João: Mais do que isso, este estudo também mostrou que o peixe paraíso foi capaz de memorizar o peixinho dourado por todo esse tempo – três meses – depois de encontrá-lo anteriormente por apenas 5 minutos!
TRILHA SONORA
Carol: Impressionante! E é incrível saber que um estudo mais recente mostrou que a memória formada quando os peixes passam por uma situação ruim pode durar ainda mais tempo. Vamos falar sobre isso.
João: No estudo ‘Long‐term memory retention in a wild fish species Labroides dimidiatus eleven months after an aversive event’, publicado em 2020, os pesquisadores descobriram que a espécie de peixe conhecida como bodião-limpador (Labroides dimidiatus) foi capaz de se lembrar de ter sido capturada por uma rede, em um único evento, por quase um ano!
Carol: Essa pesquisa mostrou que um número significativo de indivíduos silvestres dessa espécie apresentou a resposta incomum de ‘esconder-se’, quando houve a colocação de uma rede para capturá-los. Isso aconteceu apenas em um lugar onde eles haviam sido capturados da mesma forma 11 meses antes.
João: Os pesquisadores levantaram a possibilidade de que foi a combinação da presença da rede e da proximidade do mergulhador que coletava os dados para a experiência que desencadeou a resposta de esconderijo do bodião limpador. Mas, de qualquer forma, isso não nega o fato de que os peixes responderam porque se lembraram daquele evento.
TRILHA SONORA
Carol: Isso significa que um único evento muito aversivo, tal como ser capturado em uma rede, pode resultar em peixes armazenando informações por um prazo bem longo, o que permite que eles evitem ser capturados novamente em uma situação semelhante no futuro.
João: Então, sim, pelo menos algumas espécies de peixes expressam memória de longo prazo assim como os humanos. E não há razão para duvidar que outras espécies de peixes provavelmente também sejam capazes dessa capacidade, especialmente considerando que o peixe paraíso e o bodião-limpador não são espécies muito próximas.
Carol: E essa não é a única habilidade cognitiva incrível que os peixes são capazes de fazer. Muitas outras já foram descobertas, sendo várias delas bem parecidas com o que os humanos podem fazer. Continuaremos falando sobre isso nos próximos episódios sobre as habilidades dos peixes. Fique ligado!
TRILHA SONORA
João: Este episódio foi apresentado por mim, João Saraiva, e pela Carol Maia, que também o coordenou.
Carol: E você pode acompanhar a Associação FishEthoGroup em nossas redes sociais. Nós estamos no Facebook (facebook.com/fishethologyandwelfare), Instagram (@fishethogroup) e no Twitter (@group_fish). Até o próximo episódio!
TRILHA SONORA
ENCERRAMENTO DO FISH TALK
A educação como um todo foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem foram interrompidos, assim como os de socialização. Algumas atividades foram suspensas ou feitas de outra forma, e isso teve um impacto significativo na vida desses adolescentes. E é sobre isso que as jornalistas Cristiane Paião e Mayra Trinca vão tratar neste terceiro episódio da série Adolescência. Para saber mais sobre o tema, elas conversaram com Bernardo Baião, coordenador de políticas educacionais da Organização Não Governamental Todos pela Educação e com a Professora Sabine Pompeia, do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo.
CRIS PAIÃO: Olá, eu sou a Cristiane Paião, e começa agora mais um episódio do Oxigênio, o podcast de jornalismo de ciência e cultura do Labjor, o laboratório de estudos avançados em jornalismo da Unicamp.
CRIS PAIÃO: este é o terceiro episódio – de uma série de três – em que a gente mergulha na adolescência. Você pode ouvir os nossos outros dois episódios sobre esse assunto, na sua plataforma de podcasts preferida. E quem me acompanha agora, é a Mayra Trinca. Tudo bem, Mayra?
MAYRA TRINCA: Tudo bem, Cris. Nesse episódio, a gente vai falar sobre o retorno das aulas depois da pandemia, o que as últimas avaliações mostram sobre o desempenho dos alunos, que anda bastante preocupante. A pandemia pode ter passado, mas o impacto dela na educação, principalmente na educação básica ainda vai longe.
CRIS PAIÃO: Exatamente, MAYRA: Claro que a gente não vai aqui ficar só falando de números… O nosso objetivo é entender o que a ciência, a psicologia, e as pesquisas mais recentes sobre esse impacto da pandemia na educação podem ensinar pra gente.
Mas eu já trago um dado bastante importante aqui. Olha só, a porcentagem de crianças do segundo ano do ensino fundamental, que têm geralmente entre 7 e 8 anos, que não sabem ler e escrever — nem palavras isoladas – ou seja, palavras, não são nem frases…. Mais do que dobrou na pandemia. Isso segundo o INEP, que é o Instituto Nacional De Estudos E Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, responsável pelo levantamento desses dados.
MAYRA TRINCA: Pois é, isso é super preocupante. Porque, imagina a continuidade dessa aprendizagem, as dificuldades. A gente precisa falar desse processo, a longo prazo.
E só mais um dado aqui, pra gente já ir pros nossos entrevistados. De cada dez alunos de 7 anos, mais do que 3 não estão alfabetizados. Esses resultados podem ser ainda piores do que os indicados pelo SAEB, que é a prova de português e matemática, porque alguns estados registraram taxas de participação no exame abaixo de 50%. É o caso de Roraima.
CRIS PAIÃO: E esses números, no ensino médio, também são alarmantes, a gente vai falar mais sobre eles daqui a pouquinho… e tudo isso em meio a um debate que tá acontecendo agora: o da reforma do ensino médio. O governo, os deputados, os senadores, ainda não entraram em um consenso sobre como vai ficar a grade de aulas pro ano que vem.
A educação, como um todo, foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem interrompidos, assim como os de socialização — que é aquela delícia mesmo da escola, de brincar, de conviver com os amigos, porque tem muita coisa boa na escola. Algumas atividades foram suspensas ou feitas de outra forma, e isso teve um super impacto na vida desses adolescentes. Você que é professora, viu tudo bem de perto…
MAYRA TRINCA: Vi e ainda tenho visto, viu, Cris. A gente pode falar horas aqui sobre isso… As crianças e os adolescentes tendo aulas em casa dependiam muito das famílias, que não sabiam também como lidar com esse processo. E não foi só a aprendizagem formal que foi afetada, né. A gente viu muitos casos de abandono, de abusos e violência, fome, uma série de questões ligadas com o isolamento da pandemia.
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Para entender melhor tudo isso, eu conversei com o pessoal da ong “TODOS PELA EDUCAÇÃO”. Já ouviu falar?
MAYRA TRINCA: Eu descobri quem são eles recentemente, Cris, através da Sabine, que daqui a pouco a gente chama pra essa conversa. Mas sei que eles têm um trabalho muito legal de acompanhar a educação no brasil. Como foi a conversa com eles?
CRIS PAIÃO: Foi ótima! Eu conversei com o Bernardo Baião, coordenador de políticas educacionais. E aí, eu perguntei sobre esses resultados do SAEB, que foram muito ruins pras duas principais disciplinas que q gente tem no currículo, que são português e matemática. Bora saber o que ele disse sobre isso? Vamos ouvir a entrevista.
BERNARDO BAIÃO: “Aqui, tem duas mensagens, que são bastante importantes sobre esse tema. A primeira, é que a pandemia ela alarga os problemas de aprendizagem no Brasil, mas ela não inaugura. O Brasil já vivia problemas de aprendizagem historicamente, é um país com grandes desafios de aprendizagem. Essa é a primeira mensagem, então só de exemplo, quando a gente olha para 2019 e vê os níveis de aprendizagem nota-se, por exemplo, que no Ensino Médio, dos estudantes que estão concluindo aquela etapa em 2019, só um em cada 10 desses estudantes saíram com aprendizagem adequada em matemática. Então isso é uma grande falência do sistema de aprendizagem no Brasil e é algo que precisa ser enfrentada. A segunda mensagem que é bastante relevante sobre esse tema é que talvez os dados mais importantes de aprendizagem, no sentido de números mesmo, que a gente vai ter como diagnóstico da pandemia, não são os dados de 2021. E aqui, por que não 2021? Por dois motivos principais. Primeiro, porque várias escolas naquele momento estavam fechadas ainda, então, você tem um desafio de uma mesma prova aplicada para alunos que estão com escola aberta e alunos que estão com escolas fechadas. Isso traz reflexo no resultado. E segundo, que a taxa de participação nessas provas variou muito naquele período. Talvez o melhor diagnóstico que a gente vai ter da pandemia, e vai ser um ótimo diagnóstico para o país olhar para a educação, sejam os resultados do SAEB de 2023. Então, o resultado da prova realizada no ano passado, cujos resultados vão sair agora no primeiro semestre de 2024.”
MAYRA TRINCA: Bom, esses resultados, como o Baião disse, ainda não chegaram, e é por isso que a gente tem que acompanhar. E faz sentido o desempenho em matemática ter caído mais do que em português, né, as crianças já tendem a ter mais dificuldade e, isolados em casa, a gente quase não usa matemática. E isso torna essa recuperação ainda mais importante nesse momento porque se não for na escola, onde essa galera vai aprender a fazer contas básicas?
CRIS PAIÃO: São muitas questões! Incluindo a falta de professores, pessoas que se formam todos os anos mas que por questões como salário, falta de segurança em sala de aula, entre várias outras, acabam não indo pra sala de aula… pesquisas recentes também estão apontando esse impacto.
MAYRA TRINCA: E têm muitos outros problemas. Por exemplo, a evasão escolar. Muitos estudantes não voltaram depois da pandemia? Ou até voltaram, mas abandonaram a escola de novo porque tinham muita dificuldade em acompanhar as aulas. Isso desmotiva muito. Ou porque precisaram começar a trabalhar, pra ajudar a família.
A gente sabe também, que fora da escola, os adolescentes têm menos contato com educação sexual, então é esperado que aumentem os casos de gravidez que também podem afastar – principalmente as meninas – da escola
CRIS PAIÃO: Exatamente. O Bernardo baião também comentou sobre isso. Vamos ouvir.
BERNARDO BAIÃO: “Algo que se nota é que o estudante que tem maior dificuldade de aprendizagem também tem a maior tendência de sair da escola, de abandonar. Então, são políticas que têm que andar lado a lado aqui para uma garantia de aprendizagem. E a outra garantia, que é que o estudante permaneça na escola. O Brasil vem avançando. Recentemente foi implementada, instituída uma lei, que é o ‘Programa pé de meia”, que é bastante recente, em janeiro desse ano, que tenta endereçar algumas respostas voltadas para garantia da permanência do estudante na escola. Ainda muito restrita ao Ensino Médio, mas ainda falta uma política voltada para recomposição da aprendizagem. Assim, não adianta nada você propor garantia desse estudante ficar na escola se ele não aprende. Então, o estudante tem que aprender, e o Brasil não pode continuar reproduzindo desigualdades e desigualdades de aprendizagem como ocorre hoje.”
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Agora Mayra, uma coisa que o Bernardo baião, do todos pela educação, também me chamou a atenção, foi pro impacto de tudo isso na economia. Segundo ele, tem vários estudos aí mostrando como os alunos que em 2020, estavam na alfabetização, por exemplo, vão continuar sofrendo algum tipo de interferência, de problema, pelos próximos 10 anos. E claro que os estudantes dos outros anos, do ensino médio também vão ter impacto.
O Banco Mundial, por exemplo, destacou que as crianças de zero a cinco anos dessa geração podem ter rendimentos até 25% menores por causa da pandemia, por falta de estudo. E aquelas com idade entre 6 e 14 podem receber até 17% menos como remuneração pelo trabalho, por falta de estudo, de qualificação. Vamos ouvir.
BERNARDO BAIÃO: “Um dado interessante que a gente traz aqui, muitas vezes, é que um estudante que em 2020 ingressou, tava ali em fase de alfabetização na escola, então ele entra na escola, participa desse período da alfabetização em 2020, ele vai ser afetado pelos efeitos da pandemia, por pelo menos 10 anos. Entendendo que nessa trajetória o sistema educacional brasileiro está se recuperando ainda desse tombo que foi a pandemia. Então é um estudante que vai ser, se não tiver políticas públicas endereçadas a esse propósito aqui, ele vai ser impactado e prejudicado por um longo período.
CRIS PAIÃO: O nosso entrevistado, Bernardo Baião, reforça que para enfrentar o desafio do déficit de aprendizagem o país precisa implementar políticas públicas eficientes.
BERNARDO BAIÃO: “Na nossa visão o caminho é através de política pública. E algumas redes, de 2021 em diante, fizeram exercícios de implementação de políticas voltadas para a recomposição das aprendizagens. Então, você olha que algumas redes estaduais e municipais fizeram de alguma forma o dever de casa, ali, de tentar apresentar as respostas políticas que englobam aulas de reforço, tutoria, extensão de carga horária para estudantes com maior desafio de aprendizagem. Tudo isso é relevante. Mas num país tão grande como o Brasil e diverso, com diferenças regionais, raciais, sociais e diferenças de qualidade das escolas mesmo, eu acho que traz aqui para o centro da discussão a necessidade de uma política centralizada. O Ministério da Educação tem que liderar esse processo com o apoio de estados e municípios e trazendo uma política que englobe uma boa formação de professores, que englobe bons instrumentos de aprendizagem, de avaliação da aprendizagem, então aqui a gente tá falando diretamente de avaliações diagnósticas, para você identificar que você tem um aluno com dificuldade você precisa ter um bom instrumento para isso.”
MAYRA TRINCA: E sobre essas diferenças regionais Cris, ele comentou mais alguma coisa?
CRIS PAIÃO: Comentou sim, e olha que interessante: os estados que tiveram as melhores notas, foram os do nordeste! Eu perguntei pra ele o que explica essa diferença, e o que pode ser feito, pra tentar melhorar os índices do resto do país. Vamos ouvir mais um trechinho do que o Bernardo disse.
BERNARDO BAIÃO: “Quando a gente vai discutir essa questão, uma das melhores políticas de anos iniciais e finais é no Ceará, e uma das melhores políticas de Ensino Médio, em Pernambuco. Estados historicamente pobres, então, o que justifica isso? O que justifica? Isso é uma boa pergunta. É muito do que a gente traz aqui no Todos Pela Educação, são exemplos de estados como esses que vem desenhando, vem priorizando a educação. Eu acho que uma mensagem que a gente traz aqui muito forte é que não existem boas políticas públicas, se não há prioridade política. Então, estados onde se nota, não só estado, os municípios, as redes ali municipais, menores, se não tem prioridade política de gestores não anda nada. Eu acho que esse é um debate que caminha, lado a lado da parte técnica, da parte de um desenho da política pública, mas também é a parte política do que se priorizar, e a educação tem que ser a prioridade. E aqui a gente fala que quando a gente tem qualquer dúvida, de discussão sobre política, futuro do Brasil, não passa a educação como prioridade, a gente está fadado ao fracasso inevitavelmente”.
CRIS PAIÃO: Bom, e aí, eu também perguntei como é que a gente tá, então, em termos de políticas públicas nesse momento.
BERNARDO BAIÃO: “Hoje os estudos são muito claros, que a gente precisa de políticas que andem lado a lado. Então, primeiro você tem uma necessidade de uma política de recomposição das aprendizagens liderada pelo Ministério da Educação. Isso é fundamental. O Ministério da Educação precisa liderar esse processo voltado para recomposição da aprendizagem. E existem vários caminhos, o da aula de reforço noturno no contraturno, botar um tutor, monitorias, ampliação. Então, todos os dias colocar o estudante uma hora, duas horas a mais na escola para aprender o que ele deixou de aprender. Colocar os próprios estudantes para ensinar amigos que estão com dificuldade. Então, tem casos no Brasil já de monitoria entre alunos. Uma primeira parte aqui é construir boas intervenções pedagógicas, como a gente chama, para acolher esses alunos. Então é basicamente a aula de reforço e a monitoria, ali, que tem que ganhar força, que não é um ainda é um padrão no Brasil. Hoje é difícil, seja por dificuldade de ‘ah não tem sala de aula’, ‘não tem professor para dar essa aula’, não tem recurso para garantir esse tipo de atividade. Se o aluno fica um tempo a mais na escola, tem que garantir a alimentação. Como a gente garante, se tem dificuldade de garantir o básico? Olha, isso é um Desafio que está sendo enfrentado, e com recurso, com prioridade, com um plano estratégico que é colocar o aluno por mais tempo exposto à aprendizagem. A gente sempre traz uma mensagem, assim, que chega a ser engraçada. Até quando a gente vai explicar para as pessoas de outros países o que a gente chama de ampliação de carga horária para aprendizagem? É difícil eles entenderem, porque para eles isso é chamado de escola, e para gente é chamado de escola integral, porque para eles o tempo ampliado já faz parte da rotina. Não existe isso de ficar quatro, cinco horas na escola. O estudante fica na escola para aprender e quanto mais tempo ele tá ali, mais exposto a aprendizagem ele vai estar”.
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Eu achei a sua entrevista com o Bernardo muito interessante, Cris, porque ela conversa muito com a que eu fiz com a Sabine. Vou deixar ela se apresentar aqui.
SABINE POMPEIA: “Meu nome é Sabine Pompeia, eu sou docente de uma universidade chamada Universidade Federal de São Paulo ou Unifesp e eu estudo várias coisas que tem a ver com comportamento, mas mais especificamente cognição humana, ou seja, processos envolvidos em memória e atenção de pessoas. E nos últimos anos eu tenho estudado mais como isso se desenvolve ao longo da adolescência.”
MAYRA TRINCA: Você conhece a Sabine, né, Cris?
CRIS PAIÃO: Sim! Eu fiz um trabalho como jornalista no laboratório dela, e esse trabalho que deu origem a esta série que estamos apresentando.
MAYRA TRINCA: Legal, Cris! Eu queria saber da Sabine, da perspectiva dela como pesquisadora focada em adolescência, como a gente pode ajudar esses adolescentes nesse momento de readaptação pós pandemia. E ela me contou muita coisa interessante sobre o desenvolvimento do cérebro e das habilidades de aprendizagem e socialização durante essa fase da vida. Escuta só.
SABINE POMPEIA: “Então essa é uma fase super importante em que a gente não se identifica muito com outras pessoas da mesma idade e aprende como se relacionar com elas, né? Não só como identificar as pistas, né, o que que a outra pessoa tá sentindo. Ela tá gostando do que eu tô falando ou não? O que eu tô fazendo é aceitável para ela ou não? Mas também a gente aprender a como a gente regula o nosso próprio comportamento em relação às pistas que os outros estão dando para a gente né? “Ai eu falei demais. Eu percebi na cara do outro. Ah entendi aqui não é pra falar tanto”. Então são um monte dessas coisas que estão acontecendo nessa faixa etária e a gente tem que lembrar que escola não é só para aprender, né conteúdo acadêmico. Escola, talvez até mais importante ainda, seja para aprender a viver em sociedade. Então, isso tá muito negligenciado nessa volta da pandemia porque as pessoas estão muito preocupadas com a questão é acadêmica mesmo, né, de tirar notas e saber os fatos e tô vendo muito pouca atenção para essa questão social”.
CRIS PAIÃO: Nossa, verdade, Mayra! A adolescência tem muito dessa coisa de testar como se relacionar com as pessoas e ir aprendendo com isso. É uma habilidade que a gente vai construindo com o tempo.., e que nós adultos, aliás, também temos que reaprender né? Isso é muito importante.
MAYRA TRINCA: Exato! E a Sabine comentou justamente como o isolamento durante essa fase fez com que os conflitos aumentassem no retorno, na volta às aulas. A gente viu muito disso na escola, como os adolescentes têm tido mais desentendimentos e mais dificuldade pra lidar com eles.
SABINE POMPEIA: “Digamos assim, uma adolescente que tem que aprender como se relacionar com outro quando tem 12 anos aí ele pulou dois anos, nisso aí ele tem 15, quer dizer QUE ele vai ter que aprender isso com 15. Assim o número de conflitos entre estudantes está sendo muito muito maior porque as questões ainda são mais complexas ainda, eles têm mais questões para resolver em relação à Vida e conflitos pessoais e ou estão olhando pro futuro, mas ainda tendo que ter só as ferramentas de contato social que eles desenvolveram dois anos. Então, realmente isso é uma coisa bastante complicada.”
CRIS PAIÃO: Lidar com isso na escola deve estar sendo bem difícil. A gente tem acompanhado aí muitas reportagens sobre bullying, e é por isso que nós, professores, pesquisadores desse tema, também temos que ficar atentos, pra tentar entender e saber como reagir diante dessas situações. E não dá pra dizer que isso não impacta no processo de aprendizagem. Ninguém consegue se preocupar em aprender se estiver com a cabeça cheia de problemas pra resolver. Eu lembro muito de algumas situações que aconteceram, com amigos, na minha época da escola.
MAYRA TRINCA: Pois, é Cris, e isso foi algo que tanto o Bernardo quanto a Sabine comentaram, de que nesse momento os adolescentes precisam de um apoio interdisciplinar, que envolve a escola, os professores e a família.
SABINE POMPEIA: “É muito ruim que isso seja feito dentro de esfera de cada escola, né? Porque daí todo mundo vai estar reinventando a roda e realmente o ideal seria você ter especialistas, as pessoas que conhecem um assunto desenvolver um plano nacional, né, para poder auxiliar e dar o subsídios para isso. Enfim, achar alguma forma de fazer isso, mas é eu, acho bastante grave que cada escola tem que arrumar o jeito dela fazer. Algumas vão conseguir arrumar, outras não, profissionais especializados nisso, que precisam ser consultados e auxiliados a desenvolver esse material, né? Não é qualquer direção ou diretoria ou apoio psicológico da escola, que né que haja na escola que vai conseguir fazer isso aí. Não vai. Mas a gente tem especialistas temos bons especialistas no Brasil”.
CRIS PAIÃO: Essa é uma questão bem complexa mesmo, né, MAYRA: Porque a gente tá falando de política pública, de como os diferentes governos estão ou não olhando pro dia a dia desses estudantes, e não só pros conteúdos.
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Outro aspecto interessante que a Sabine comentou comigo, foi sobre como não houve nenhum tipo de adaptação do currículo ou dos materiais didáticos pra esse momento. Eles só seguiram como se nada tivesse mudado.
CRIS PAIÃO: Por isso que a ideia de aulas extras ou de reforço são importantes, mas também é preciso que haja uma mudança de currículo, de carga horária, uma adoção de sistema híbrido, como o Bernardo baião explicou, na primeira parte do podcast.
MAYRA TRINCA: E tem ainda outro aspecto que mudou nessa volta do isolamento e que também tá muito relacionado com a essa nova geração, que é a questão da concentração e do foco. Não sei você, Cris, mas eu percebi que minha capacidade de concentração e memória diminuíram muito depois da pandemia.
CRIS PAIÃO: Nossa, a minha também. A gente vive na era do excesso de informação, mas isso faz com que o nosso cérebro não consiga dar conta de tudo. Isso sem contar com questões emocionais envolvidas no processo da pandemia , como perder pessoas queridas, ter medo da doença. Eu acho que só agora, depois de uns dois anos aí, dessa fase mais crítica, que eu tô conseguindo de novo, me concentrar, e estudar o que eu preciso estudar. Eu acho que todas essas dicas aí, da Sabine, também valem pra mim.
MAYRA TRINCA: A boa notícia nesse sentido é que, segundo a Sabine, essa é uma habilidade que a gente consegue recuperar.
SABINE POMPEIA: “Isso é uma coisa que volta rápido sabe? Se a gente treinar. É uma das habilidades cognitivas que a gente consegue recuperar rapidamente. Mas aí não pode estar olhando o celular toda hora, tem que estar motivado para fazer aquilo, né? Se a escola tá tentando fazer uma recuperação disso a quantidade de matéria é excessiva para eles. Eles não vão conseguir manter o foco por muito tempo. Isso é uma coisa que a gente tem que dar descanso, né?”
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Eu acho esse finalzinho da fala da Sabine muito importante e queria destacar isso aqui. É claro que os adolescentes precisam melhorar o desempenho na escola, mas a gente tem que deixar um tempo de descanso pra eles. Não dá pra encher a semana de aulas e deixar sem tempo pra lazer ou pra atividades físicas, que são tão importantes nessa fase de desenvolvimento.
CRIS PAIÃO: Ótimo ponto, MAYRA: E a pandemia mostrou muito isso pra gente também, a importância de buscar mais equilíbrio, de tentar se divertir, ficar mais perto de quem a gente gosta. Todo mundo precisa descansar e respeitar os seus próprios limites, seja no trabalho, na escola, ou em qualquer outra área da vida. E eu acredito que isso, mesmo em diferentes classes sociais, também ficou muito evidente. Claro que um estudantes mais humildes, às vezes, não tem condições de ter tantas atividades por falta de dinheiro mesmo. Eu falo, pela minha própria trajetória, porque sempre morei na periferia e era tudo muito caro, também tinha o transporte, que é caro. Mas os adolescentes têm que ter essa pausa pra ver um filme, jogar vídeo game, futebol, fazer alguma atividade e conversar com os amigos.
MAYRA TRINCA: Exatamente, então, uma sugestão que a Sabine deu foi complementar essas aulas regulares com algumas tarefas de casa. Algo que não demande tanto tempo como aulas extras mas que ainda ajudem os adolescentes a refletirem mais sobre esse assunto também.
CRIS PAIÃO: Hmm… gostei! Até porque a gente sabe, por vários estudos sobre aprendizagem, que a gente fixa melhor os conteúdos quando a gente tem a oportunidade de refletir e de criar, em cima deles. E daria pra pedir trabalhos em que os alunos pudessem se divertir de alguma forma também, né? Com quadrinhos, jogos, vídeos, e até podcasts.
MAYRA TRINCA: Isso mesmo! Só que esses trabalhos em casa precisam ter uma mãozinha da família. E aqui eu queria fazer um parênteses rapidinho: quando a gente fala de família, estamos dizendo sobre a rede de apoio dos adolescentes. Que pode ser pai e mãe, mas também pode ser irmãos, família estendida como tios, tias, avós, etc.
SABINE POMPEIA: “Mas também lembrar que adolescente tem muita dificuldade de organização. Então assim, deixar na mão de um adolescente que ele estude no tempo que ele tem livre, que ele se organize é muito penoso e é muito difícil. Não é falta de vontade do adolescente, ele de fato não consegue. Então tem que tentar trabalhar com adolescente um esquema de estudo. Põe a agenda do telefone todas as tarefas, marca todas as provas que você tem na agenda do telefone. Quando que você vai ter que estudar, não põe pra véspera dessa da prova, mas coloca vários momentos para estudar. Então assim, esse tipo de coisa, os adolescentes precisam de apoio. Eu sei que eles são grandes, que eles são inteligentes, que eles estão aprendendo coisa complexa na escola, mas organização e planejamento não tá bom nessa faixa etária, tá, na maior parte dos adolescentes. Então os pais podem ajudar muito ajudando a estabelecer uma rotina. Idealmente que seja feito isso junto com o adolescente não vindo de cima para baixo, né dos pais para os filhos. E aí ficar monitorando se eles estão conseguindo e se não estão conseguindo. E ajudando eles a ajustar esse esquema de estudo pra que ele fica fique possível, né?”
CRIS PAIÃO: Ta aí, a importância dos familiares, de uma rede de apoio, mais uma vez.
MAYRA TRINCA: Sim, Cris, não dá pra escapar de pensar o papel de pessoas próximas a esses estudantes nesse momento. Inclusive para ajudar no desenvolvimento das habilidades socioemocionais.
CRIS PAIÃO: Hmm, isso é legal! E quais foram as dicas que a Sabine deu, de como os pais podem ajudar?
MAYRA TRINCA: Ah foram várias, escuta só:
SABINE POMPEIA: “Em relação a como eles se relacionam com os colegas e amigos é difícil os pais intervirem, né? Especialmente na faixa etária da adolescência porque eles não estão juntos, né. Mas conseguir abrir espaço com os adolescentes para conversar sobre dificuldades que eles estão tendo, né. Contar a história, porque que brigou com uma fulaninho ou ciclano, tentar mostrar outro ponto de vista. Como a outra pessoa pode ter se sentido, é um exercício importante para eles porque demora bastante pra gente, ao longo da adolescência, desenvolver capacidade de empatia e de percepção do outro. A gente é muito focado em si próprio. Isso é natural da adolescência e é só lá pelo final da adolescência que a gente vai conseguir se colocar no lugar do outro, né? Identificar direito as emoções do outro, isso demora muito tempo para maturar. Então, se um jovem tiver a oportunidade de conversar com uma pessoa mais experiente, mais velha, que vá poder tá fazendo esses contrapontos: “Olha, você pensou que talvez tenham se ofendido, você pensou nisso, pensou naquilo.” Isso ajuda o adolescente a aprender a fazer esse processo.”
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Muito legal essa sua conversa com a Sabine, Mayra. Mas antes de fechar aqui o nosso episódio de hoje, eu queria só divulgar, mais uma vez, os quadrinhos da turma da Jovenilda! Que foram feitos no projeto ADOLESENDO, junto com a Sabine, e com o professor marcos moreira e os estudantes de uma escola pública, da zona leste de São Paulo. A ideia é que esses quadrinhos, que trazem os resultados das pesquisas científicas feitas pelo grupo de pesquisa da professora Sabine na Unifesp. Todo esse material tá disponível – de graça – no site do projeto ADOLESENDO, www.adolesendo.info.// e os quadrinhos são super divertidos, você já leu, Mayra?
MAYRA TRINCA: Já sim, Cris, e eles são muito legais, vale a pena procurar! E pra quem é professor, tentar bolar uma aula, por exemplo, usando os quadrinhos pra puxar algum debate em sala de aula. Ou até em algumas situações na nossa casa, enfim, onde quer que a gente precise entender melhor esses sentimentos e esses comportamentos sobre a adolescência.
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Bom… o episódio três sobre os impactos da pandemia na educação brasileira fica por aqui, mas a gente lembra que essa é uma série – com três episódios! E você pode ouvir os outros dois primeiros, nas principais plataformas de podcast ou no site do oxigênio.
As entrevistas e a produção deste episódio foram feitas por mim, Cristiane Paião
MAYRA TRINCA: A apresentação foi feita por mim Mayra trinca e pela Cristiane Paião (@cristiane.paiao).
CRIS PAIÃO: A revisão do roteiro foi feita por Simone Pallone. Os trabalhos técnicos são da Carolaine Valentin Cabral. O oxigênio é apoiado pela SEC – secretaria executiva de comunicação da Unicamp e pelo serviço de apoio ao estudante, o SAE.
MAYRA TRINCA: Todas as referências utilizadas neste episódio, e as entrevistas publicadas com os nossos convidados podem ser encontradas na nossa página na internet, www.oxigenio.comciencia.br.//
CRIS PAIÃO: Os episódios sobre a adolescência fazem parte do projeto “Adolescência e puberdade em pauta: divulgação jornalística das pesquisas realizadas no projeto temático “efeito do desenvolvimento puberal na autorregulação do comportamento e suas relações com as condições de vida atual e pregressa” que eu, Cristiane Paião, desenvolvi com o apoio da Fapesp através da bolsa mídia ciência.
MAYRA TRINCA: E o projeto ADOLESENDO também recebeu apoio da Fapesp, pro desenvolvimentos das suas pesquisas.
CRIS PAIÃO: Gostou do programa? A gente espera que sim, e que você possa entender melhor os sentimentos, os comportamentos dos adolescentes à sua volta, daqui pra frente, seja na sua casa, na sua família, né… Ou no seu trabalho, na sua pesquisa, e tudo com a ajuda da ciência porque tem muitas pesquisas legais, sendo desenvolvidas sobre a adolescência.
MAYRA TRINCA: Obrigada por nos acompanhar e até o próximo episódio!
[trilha encerramento]
OS PEIXES TAMBÉM SOFREM: PARTE 4
ABERTURA DO FISH TALK
um peixe em um compartimento central de um aquário metade preto, metade branco, e observar
Esta é a segunda parte do episódio produzido por Yama Chiodi sobre a pesquisa da antropóloga portuguesa Liliana Gil, sobre as atividades relacionadas à tecnologia do bairro Santa Ifigênia, em São Paulo. O foco desta vez é a escola de reparos de celulares, a Prime, que atrai pessoas de todo o Brasil. Foi nesse espaço que a pesquisadora encontrou não apenas alunos, mas ativistas da tecnologia, como você vai ouvir.
YAMA: No primeiro episódio a gente começou comentando do caos urbano do Santa Ifigênia. Em algum lugar do bairro um forte contraste se apresenta para quem sabe procurar.
Uma escola de conserto de celulares que atrai pessoas de várias partes do Brasil. As cores são pensadas com critérios rigorosos, os espaços organizados, limpos e arquitetados para serem fluidos e funcionais. Seu contraste com o bairro onde está localizada não passa sem algumas contradições. Se na estética ela quer se diferenciar do bairro, sua proposta de formar técnicos capazes de reparar celulares a aproxima do Santa Ifigênia.
Nossa convidada hoje é novamente a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que esteve presente na escola como etnógrafa, mas também como aluna de duas diferentes turmas. Em sua pesquisa, refletiu sobre a escola e o bairro de Santa Ifigênia enquanto aprendeu na prática a reparar celulares. Em seguida a gente conversa sobre o trabalho de campo da professora na escola de consertos de celulares Prime, sobre formalidade e informalidade na formação técnica no Brasil e também sobre as polêmicas em torno do termo gambiarra.
Oh… se você caiu de paraquedas neste episódio, recomendo que você escute a primeira parte antes de continuar, ok? Essa é uma parte dois que realmente é uma parte dois. Risos
Eu sou o Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e nesse segundo episódio eu converso mais uma vez com a Dra. Liliana Gil, professora da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, que fez sua pesquisa de doutorado no Brasil. Contamos em primeira mão, também, que sua pesquisa está em vias de virar livro. Depois da vinheta.
YAMA: Continuando nossa conversa, agora nos voltando à Prime em si. Como foi que conheceu a escola e porquê decidiu fazer dela seu campo de pesquisa etnográfica?
LILIANA: Então, eu achei que ia fazer pesquisa sobre Santa Ifigênia enquanto bairro e entrevistar todo mundo, mas de fato foi difícil fazer esse tipo de trabalho e em parte pelas questões de gênero. Até que numa conversa com um colega, ele me falou nesta escola, ah mas sabes que existe esta escola, talvez fosse um bom ponto de entrada e foi assim, foi um amigo, enfim. Inclusive a primeira vez que fui lá, fui com ele e conversei com os professores, com os instrutores e inclusive expliquei, eu estou a fazer uma pesquisa sobre Santa Ifigênia, seria interessante para mim saber como funciona a escola. Ah, claro, vem ser aluna!
YAMA: E como aluna? Se sentiu acolhida pelos colegas? Era estranho uma antropóloga entre eles?
LILIANA: Achei muito engraçado, porque durante todo o processo eu fiz o curso de reparo e várias vezes falava no meu doutorado e meio que as pessoas me diziam, sim, sim doutorado, claro, quando você perceber, quando você ver, o dinheiro que pode fazer com reparos, deixa o doutorado, deixa a antropologia de lado e vai abrir a sua lojinha, porque é outra dimensão. Não, os meus colegas achavam que bom, bom era eu abrir um box em Lisboa e trazer os meus colegas para lá e trabalhávamos todos juntos na nossa box. Íamos fazer muito dinheiro assim.
YAMA: Já que estamos falando sobre seus colegas. Qual é o perfil dos alunos da Prime? Dá pra fazer alguma generalização demográfica?
LILIANA: Talvez não dê, eu acho que a generalização é que havia pessoas de todas as idades e de todos, inclusive de muitos estados diferentes, tinha um colega que tinha vindo do Acre, tinha colega do Recife, tinha colega, sabe, era assim um conjunto de pessoas mesmo muito diferente, eu fiz o curso com duas turmas diferentes.
YAMA: Mas migrantes ou pessoas que vieram para estudar na escola?
LILIANA: Brasileiros que vieram estudar na escola, não, que moravam lá e vinham fazer o curso uma semana, duas semanas, o tempo que fosse necessário, um mês, dependendo se faziam em formato intensivo ou não, ficavam em São Paulo e depois regressavam para as suas cidades para desenvolver o seu negócio. Então tinha, mas também tinha, tinha jovenzinhos, tipo, sei lá, havia um colega que tinha que ter uns 18 anos, os pais dele pagaram o curso porque queriam que ele fizesse alguma coisa profissional com reparos. Mas também tinha pessoal mais velho que tinha tido uma profissão a sua vida toda, tinha ficado desempregado e estava um pouco a tentar reinventar-se. Há a história de uma mulher em particular da periferia de um dos bairros, penso que da Zona Leste, já não tenho a certeza, mas de um bairro periférico de São Paulo que tinha uma lojinha de acessórios, de celulares e muita gente vinha à loja dela, perguntava se ela fazia reparos, ela não sabia fazer e ela entendeu que havia ali uma oportunidade de negócio. Então foi fazer o curso, tinha inclusive filhos, cuidava dos filhos na sua loja, era cuidadora e estava na loja trabalhando ao mesmo tempo. Então havia assim pessoas de muitas, claro, em termos de classe, diria, classe trabalhadora, talvez média baixa, majoritariamente brancos, mas não apenas. Mas de vários estados, de várias cidades, de vários bairros, não apenas de São Paulo, mas também de fora.
YAMA: No seu artigo você dá bastante importância pro contraste entre a escola e a Santa Ifigênia. Que contrastes são esses?
LILIANA: A Prime enquanto espaço visto de fora e, devo reforçar que este não é o nome verdadeiro, isto é um pseudônimo que eu utilizo para proteger o anonimato dos envolvidos e utilizo sempre pseudônimos, a menos que me peçam explicitamente para utilizar os nomes. O que às vezes acontece especialmente quando você trabalha com artistas ou ativistas que gostam de ser reconhecidos. Mas a Prime, assim, vista a partir de fora, mais uma vez, os edifícios de Santa Ifigênia não revelam o que está lá dentro, o espaço lá dentro era bastante novo, como eu descrevo, o equipamento, os espaços bonitos até, não é? Assim, organizados, tudo era color-coded, com cores muito particulares e era tudo muito intencional, a escolha das cores, a forma como o espaço estava organizado. E depois vim saber que o criador dessa escola era alguém que tinha trabalhado para o McDonald’s, o que eu achei muito curioso, era uma pessoa que trazia algum conhecimento de estandardização, de como tornar as coisas muito eficientes e melhorar o workflow e peço desculpa aos estrangeirismos, mas às vezes não me lembro das palavras.
YAMA: Interessante. Dá um aspecto de formalidade, né? Em meio a um mar de informalidade.
LILIANA: E… sim, parece muito contrastante e eu acho que utilizei a estratégia retórica de enfatizar o contraste no artigo porque facilita ou dá uma imagem, não é? Isso é bom para contar histórias. No entanto, a crítica que se faz a questões de informalidade é que toda informalidade tem as suas formas de formalidade. Então eu não diria que, embora eu esteja falando de Santa Ifigênia como caótica, como isso é o que transparece, não é? A aparência do espaço, mas o espaço tem que ter regras, não é? Tem as suas lógicas e as suas regras. (…) Agora, talvez a Prime esteja a flertar com a estética de outros espaços, que não são talvez espaços de Santa Ifigênia. E é isso que aspiram muitos dos alunos que vão à Prime, que depois sabem que para ter um negócio bem sucedido, o ideal é montar o seu negócio de reparo num bairro de classe alta, onde juntam um shopping caro. E enfim, ali um jogo, claramente, a Prime está tentando preparar os alunos para fazer o máximo de dinheiro possível e dá estratégias para fazer isso. Então há o contraste da estética, o contraste da performance da organização, não é? Santa Ifigênia não precisa de… tem a sua organização, mas não faz a performance da organização da mesma forma que a Prime faz. Eu acho que esses são os contrastes, assim, maiores, mas têm coisas em comum, porque todos esses espaços têm as suas próprias lógicas e regras.
YAMA: Achei curioso isso que você falou. Você falou em performance da organização. No artigo você fala sobre o cuidado que eles têm com uso de EPI, com a limpeza do espaço e até as cores de objetos como luvas de proteção. Você acha que essa organização interna é mais performática que uma questão de segurança? É e não é? Como é? Risos.
LILIANA: É e não é, é e não é. Às vezes dava a sensação que é mais por uma questão de performance, de competência, de organização, de… é e não é. Eu acho que as luvas, o cuidado com a aparência, não é? Tipo as cores da loja, dá toda uma discussão sobre cores que eu acho fascinante, quando se diz que a 9010 é a Apple, que passa alta, e depois há o 30, 20… assim, todos os códigos de cores são pensados de acordo com o público alvo que você tem em mente. (…)
YAMA: Esse cuidado com a organização me faz querer retomar a questão sobre formalidade e informalidade. Perto do Santa Ifigênia, a Prime inspira uma formalidade. Mas os cursos não são algo reconhecido pelo estado, ou formais como o ensino técnico oficial.
LILIANA: (…) Eu fico sempre muito perdida com debates sobre formalidade e informalidade, porque acho que é sempre… tudo é formal e informal até a um certo limite, não é? Acho que na questão particular da Prime, que é interessante e importante notar, é que de fato não é creditada pelo Ministério, não é? O diploma, como estávamos falando agora, o diploma não é um diploma reconhecido pelo Estado brasileiro, pelo… então, mas é um diploma que para as pessoas significa muito, que é um diploma que elas vão colocar na parede e vai estar visível e vai ser uma forma de dar autoridade e dar autoridade à sua profissão. Então, é definitivamente extremamente formal, porque é um programa bem montado, com manuais, com uma estrutura pedagógica, com prática, não é? Tem aulas teóricas, aulas práticas, é extremamente bem montado do ponto de vista pedagógico. Eu achei bastante eficaz da forma como essa informação é passada e o treino é feito. Mas depois funciona completamente à parte do sistema educativo brasileiro, não é? E nesse sentido é absolutamente informal.
Na pesquisa da professora Gil, apareceu essa discussão sobre formalidade e informalidade que me parece muito importante no caso do Brasil. Em dois sentidos diferentes. Primeiro, a gente pode se perguntar, onde começa e onde termina a formalidade e a informalidade nos comércios populares e de grandes centros urbanos, como é o caso do Santa Ifigênia? Segundo, onde será que está o lugar da formação técnica no Brasil? Um aspecto dela é formal e fomentado pelo estado, no sistema S e nos institutos federais, por exemplo. Mas uma parte relevante da formação técnica no Brasil é feita em lugares como a Prime, que não tem qualquer respaldo oficial – ainda que ensine e entregue diplomas. Essas não são perguntas retóricas. São perguntas que eu fiz para um sociólogo do trabalho, o Dr. Tarcísio Perdigão Araújo Filho, que é professor do CEFET-MG. Primeiro, foi isso que ele me disse sobre os comércios populares:
TARCÍSIO: A formalidade urbana foi primeiro pensada como um fenômeno em si, que era observada exclusivamente nos chamados países de terceiro mundo, na década de 60, 70, então se tornou um campo de estudo em si que fazia contraste com a forma com que os países do centro do capitalismo organizavam suas atividades econômicas. Então esse termo virou meio que um grande guarda-chuva para tudo aquilo que não se enquadrava naquele padrão ocidental, vindo da Europa, do bem-estar social, do fordismo. Com o tempo os estudos foram se tornando mais empíricos e comparativos também entre as diferentes realidades dos países e foi vendo que existiam, na verdade, inúmeras gradações entre o que poderia ser formal e informal. Quando a gente vai para fazer um estudo sobre o comércio popular, a gente vê, obviamente, a gente está contaminado por esse olhar de ver o que é formal, o que é informal, o que é legal, o que é ilegal, mas ao nível dos atores ali aquilo está bastante misturado e os atores eles mobilizam essas diferenças. Por exemplo, quando a gente está olhando para ambulantes, alguns têm, por exemplo, as licenças, as permissões do Estado para poder fazer a sua atividade e outros não. E muitas vezes esses signos do que é formal, do que é informal, não têm necessariamente um padrão muito bem determinado. Mas também acho que é importante falar que as práticas informais não estão restritas
aos universos do “empreendedorismo dos pobres”. A gente olha para uma empresa que sonega imposto, por exemplo, uma empresa grande, a loja do shopping lá que você comprou o celular novinho, às vezes está com as relações trabalhistas avacalhadas também.
YAMA: Depois, eu perguntei pra ele especificamente sobre as posições técnicas.
TARCÍSIO: Eu tenho a impressão de que os cursos técnicos, esses dos sistemas federais, esses que a gente está chamando do curso técnico formal, eles dizem muito em respeito a uma política de Estado relacionada à industrialização, ao sentido do desenvolvimento que o Estado está ali desenhando, envolve o aprendizado técnico para você, enquanto uma nação organizar os processos produtivos. Quando a gente olha para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a gente vê na verdade que a informalidade ocupa um lugar estrutural. Então, nada mais condizente desse tipo de desenvolvimento em que a industrialização no Brasil é fraca, foi historicamente fraca e incapaz de absorver a mão de obra e de não acompanhar a urbanização, enfim, que essa massa de informais também fosse se formar. Então, quer dizer, a busca pelo conhecimento técnico ligado ao celular, que é uma demanda relativamente recente, se a gente pega a história do Brasil, ela acaba tendo maior centralidade, às vezes, do que um conhecimento, por exemplo, os conhecimentos técnicos clássicos da indústria.
YAMA: Eu tenho a impressão que há no Brasil certo preconceito e desvalorização com as profissões técnicas. Você percebeu isso no seu campo?
LILIANA: (…) Eu acho que isso é geral, na verdade, acho que não é uma especificidade brasileira esse tipo de preconceito em relação às profissões técnicas, que eu pessoalmente não tenho e acho que no meu trabalho aquilo que eu tento fazer é mesmo contrapor isso, não é? E mostrar a importância das profissões e a importância de reconhecer e reconhecer não apenas socialmente mas monetariamente. E se você vai para lugares, eu acho, no Brasil a mão de obra é muito barata e a desigualdade permite que profissões técnicas sejam muito mal pagas, mas você vai para lugares, cada vez mais em Portugal é assim e nos Estados Unidos, essas profissões são muito bem pagas. Quando você precisar de alguém para arranjar a canalização, um canalizador, vai ter que pagar muito, as pessoas são cada vez mais raras, um trabalho bem feito requer muito conhecimento técnico e, enfim, são profissões muitíssimo importantes que vão ficar conosco muito tempo.
YAMA: Entre o formal e o informal… lá estava uma professora universitária fazendo cursos técnicos de reparo como aluna. A pergunta que não quer calar é: você se sente capaz de consertar celulares hoje? Será que vamos ver um box da Liliana em Columbus, Ohio para reparar os celulares dos amigos? Risos.
LILIANA: Eu sinto-me mais ou menos, eu acho que não tive a prática que deveria ter tido e uma das coisas que a escola oferecia era depois de você completar o curso tinha direito a frequentar as bancadas e utilizar o equipamento da escola durante já não sei quantas horas, precisamente para praticar e fazer os primeiros reparos, nesse contexto e com algum apoio dos professores. Mas eu sei, o que eu sei exatamente agora é onde encontrar a informação que necessito. Também não, esta informação, muita dela é pública, não é? Eu comentei no artigo que na escola utilizamos muito o website californiano iFixit, fica aí a recomendação. Então, sei onde encontrar a informação, sei que equipamento eu iria precisar, que não tenho, nomeadamente máquina de soldar e tenho alguma confiança que se precisar de um reparo sei qual é o tipo de trabalho que está envolvido e já ninguém me engana. Risos. Eu sei quanto custa aquele trabalho, mas também sei apreciar o que me envolve, não é? Mas não, neste momento, não faço reparos para amigos, lamento. Risos.
YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… No artigo você discute brevemente que a escola promoveria dinâmicas anticapitalistas, certo?
LILIANA: Talvez. (…) Mas tem a ver com esta questão do reparo, não é? Por um lado, é uma escola privada que pretende fazer dinheiro, não é? Não é uma non-profit, não é? Tipo, tem essa missão e é bem sucedida daquilo que eu vi e pareceu muito bem sucedida nisso, mas lá está, está a promover e a permitir reparar coisas que… reparar um iPhone, por exemplo, é uma medida, acho, é um comportamento anticapitalista, não é? Vai contra os interesses da Apple, que faz tudo o que pode para manter os seus equipamentos fechados e impossíveis de reparar ou apenas reparáveis pela marca. Inclusive, pratica técnicas muito agressivas de, como se diz, obsolescência planejada. (…) Então, uma escola com uma Prime, aquilo que faz é contrapor isso, não é? E criar alguma resistência no sistema, o que para mim é fantástico. Agora, se me perguntar, mas este é o modelo de escola que queremos, é o modelo geral para o mundo, para o Brasil? Não, não, porque é uma escola privada, é preciso… os alunos, muitos deles pedem créditos para fazer estes cursos, não parece que seja uma situação ideal, mas se conseguíssemos dar esses cursos de forma pública, acho que seria muito, muito interessante, não é?
YAMA: Sem dúvidas. Pegando carona no que você disse sobre as práticas da Apple… Eu acho que percebi no seu artigo certo paralelo entre os contrastes entre iPhone e Android e o Santa Ifigênia e a escola, certo? Ao menos do ponto de vista da escola. Risos. Será que essa metáfora é produtiva?
LILIANA: Sim, sim, sem dúvida. E acho que há uma tentativa de fazer isso, uma tentativa de criar distinção, não é? Toda aquela conversa sobre o oceano azul e o oceano vermelho e onde tem sharks, onde tem, não sei, sardinhas. Há o peixe pequeno e o peixe grande. Então, sem dúvida que aquilo que a escola dá é essas narrativas e essas possibilidades, mas também explica como abrir, no fundo explica como adequar o seu negócio ao público que você tem. (…) Mas eu acho que há essa tentativa, sim, do ponto de vista da escola. A própria escola joga com essas ideias. O mais bizarro de tudo isto, agora um aparte, é que no meio disto tudo é mais fácil consertar Androids, porque a tecnologia é mais aberta, mas no fundo é mais fácil reparar, na verdade, mais fácil reparar iPhones, porque é tudo tão modular que é literalmente encontrar os módulos, só que é difícil comprar os módulos oficiais, não é? Normalmente são cópias.
MAYRA: Oi, aqui é a Mayra e eu vim contar para vocês sobre o lançamento da nova temporada do podcast Mundaréu: De Lua em Lua, nova temporada do Mundaréu sobre menstruação e antropologia. Serão sete episódios, lançados um por dia, durante os dias 22 a 28 de maio de 2024; confira o trailer e ouça no site Mundaréu – Podcast de antropologia ou no seu streaming de áudio preferido. De Lua em Lua é feita para e por adolescentes. São 7 ciclos recheados de histórias descontraídas, com diversas vozes diferentes e compartilhamentos sinceros sobre menstruação, adolescência e dignidade menstrual, que nos ajudam a abrir mentes e corações sobre os desafios e belezas de menstruar. Não perca essa conversa essencial e transformadora. Prepare os fones de ouvido e embarque nessa jornada de ciclo em ciclo, de Lua em Lua!
YAMA: Nesse último bloco deste episódio, a gente retoma um assunto polêmico, que é a conexão entre improviso na produção tecnológica e o conceito de gambiarra. Nós brasileiros estamos super acostumados a usar a palavra gambiarra no nosso dia a dia. Ironicamente… quando eu estava gravando esse episódio eu tropecei no fio e acabei quebrando o adaptador da tomada do meu notebook, que desprendeu o plug da fonte. Prontamente, fui à porta da minha geladeira e usei a superbonder para improvisar um conserto temporário que me permitiu continuar gravando. Um jeito poético de começar uma conversa sobre gambiarra, não é?
Nem sempre esse conceito tem uma conotação negativa, como quando a gente refere a um serviço mal feito, por exemplo. Por vezes a gente usa esse termo para assinalar que um problema foi resolvido de modo criativo, com os recursos que estavam disponíveis. Este segundo sentido acabou caindo nas graças de alguns pesquisadores e pesquisadoras estrangeiros, que viram no termo um conceito que organiza práticas de produção tecnológica fora dos centros do norte global. Mas, no âmbito das ciências sociais, o encantamento dos gringos com a gambiarra nem sempre é bem recebido. Frequentemente cientistas sociais brasileiros de diversas disciplinas alertaram sobre possibilidade de o interesse gringo denotar certa romantização da pobreza e também o problema de querer “descobrir”, entre aspas, um conceito que para nós é absolutamente cotidiano. Curiosamente, foi em um desses debates que eu conheci a professora Liliana, num evento na UFSCAR onde ela apresentava seu trabalho e falava sobre seu interesse no improviso na produção tecnológica. Naquele momento, já com alguns anos de pesquisa de campo no Brasil, ela encontrou lugares bons para pensar tanto em espaços ativistas, caso dos hackerspaces, como em comércios populares, caso do Santa Ifigênia.
YAMA: Agora, assunto polêmico. Eu te conheci em 2018, justamente apresentando um trabalho que articulava o conceito de gambiarra com práticas de improviso na tecnologia. Essa ideia continuou importante na sua pesquisa?
LILIANA: Olha, eu, na verdade, esta pergunta é excelente porque foi assim que a pesquisa começou e provavelmente vai ser assim que a pesquisa vai acabar, deixa eu explicar. Lembro dessa viagem que eu falei em 2014, foi nesse momento que eu conheci a expressão gambiarra, até foi no Garoa, no HackerSpace e foi a partir daí que eu fiquei muito interessada e fui lendo mais sobre o termo. Em Portugal não existe a palavra, ou existe a palavra gambiarra, mas não tem o mesmo significado. Gambiarra, até salvo erro, é as luzes do teatro, é umas luzes que se usa no teatro para iluminar o palco, mas não tem essa noção de improviso conectada. E foi por isso mesmo que eu fiquei muito, muito intrigada, que é o fato que a mesma palavra consegue ter vidas tão diferentes, em espaços tão diferentes e acho que isso tem que… claro que tem que ver com a trajetória do Brasil, com aquilo que é realidade no Brasil, o Brasil pós-colonial, o Brasil que foi colonizado por portugueses, foi um dos países que mais escravizou no mundo, provocou situações de extrema desigualdade, sei lá, infraestruturas que são extremamente precárias, condições de vida, etc. Então é nesse contexto que a palavra, uma palavra ligada ao improviso e à tecnologia ganha toda uma vida que não tem, de fato, não tem da mesma forma em Portugal. Mas enfim, então a pesquisa começou com um trabalho à volta disso e eu escrevi toda a tese doutorado procurando a ideia de improviso em conexão com tecnologia e tentando fazer essas discussões.
YAMA: No evento que eu citei, a professora Catarina Morawska te aconselhou a ter cuidado ao lidar com a ideia de gambiarra enquanto portuguesa.
LILIANA: E na verdade foi muito importante para mim porque eu percebi que algo que me disse foi cuidado, que eu estava utilizando o Buarque de Holanda e uma série de autores assim mais do canon do pensamento brasileiro e ela disse cuidado, com esse tema vai com calma, como portuguesa falando desse tema, vai com calma. E eu achei isso muito importante porque me deixou assim, mas ok, tenho que fazer quase a crítica da crítica, não é? Tenho que pensar na minha posicionalidade em relação a objetos de estudo e como tudo isso se relaciona. (…) E mais recentemente, há toda uma série de autores escrevendo sobre Gambiarra como esta coisa, como uma possibilidade pós-colonial, não é? Tipo, de pensar a produção de tecnologia a partir de outro lugar. E o que eu fiz precisamente na tese, que eu acho que o livro vai acabar sendo, é uma etnografia destas várias formas de pensar sobre gambiarra e tentar, com o máximo de cuidado possível, colocar isso em diálogo com a minha própria posicionalidade enquanto portuguesa.
YAMA: Conversando hoje mais cedo você me disse que está escrevendo um livro baseado na sua tese. O conceito de gambiarra vai continuar sendo importante para essa conversa sobre improviso e tecnologia?
LILIANA: É um termo complicadíssimo, super interessante, que eu não vou resolver. Também não me cabe a mim, acho que as etnografias muitas vezes não resolvem nada, só trazem-as de cima e enfatizam as técnicas, não é? E apresentam-nas. Mas o que eu estou procurando escrever, e já comecei, é um livro que faço uma espécie de mapeamento das várias formas como improviso e tecnologia foram pensadas. Às vezes de forma positiva, outras vezes de forma negativa, alguns dizendo que é, lá está, uma forma pós-colonial de olhar para a produção de tecnologia, outros dizendo que na verdade é uma romantização da pobreza. E também perceber que essas dinâmicas acontecem em outros países, em outros contextos, talvez não sejam tão faladas como no Brasil, e acho que é por isso que o Brasil é tão interessante para pensar esta questão do improviso. Mas o improviso está em todo lado, não é? E está em Portugal, está nos Estados Unidos, está em Singapura, está em todo lado. (…) Eu acho que o meu interesse desde o início na ideia de gambiarra, na ideia de improviso, é sempre numa procura de questionamento das minhas assunções e das minhas assumptions, daquilo que é considerado tecnologia e produção de tecnologia em lugares como Portugal, como nos Estados Unidos, mas também como no Brasil, dentro de certos contextos.
YAMA: Agora, já falando sobre seu livro. Está encaminhado? Já tem uma previsão de lançamento?
LILIANA: Olha, nunca pensei na vida de escrever um livro, mas de fato se você está na academia americana, nas nossas áreas, é algo que é esperado. Então a ideia seria transformar a tese de doutorado no livro. Vou regressar agora em junho, julho, porque de fato o Covid interrompeu uma pesquisa. Eu felizmente consegui fazer muita pesquisa antes do Covid e como disse fui todos os anos desde 2014 e depois passei 2018, 2019, passei 13 meses, sobretudo em São Paulo, mas de fato desde o Covid que não tive a possibilidade de revisitar. Então quero muito voltar, saber como estão as coisas, quero rever amigos sobretudo, sou uma pessoa que faz muita pesquisa de campo através de amizade e de conversar com pessoas e às vezes… Então quero muito reconectar com espaços, com pessoas das quais tenho muitas saudades.
YAMA: Tá certo. Muito obrigado Liliana pela entrevista. Espero que a gente possa conversar de novo quando o livro for lançado.
LILIANA: Muito obrigada, Yama, pela generosa conversa. A quem nos ouviu, muito obrigada por ouvirem. Se tiverem questões, por favor, o meu email é [email protected]. Também podem encontrar online, se googlarem Liliana Gil Antropologia, tenho a certeza que vão encontrar os meus contatos. Estou muito disposta a partilhar artigos, para partilhar ideias. É isso, muito obrigada pela oportunidade, muito obrigada, Oxigénio também.
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem fez a divulgação do podcast Mundaréu foi a Mayra Trinca. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição.
O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoiou neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link:
Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link:
Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista, conhecido pelo comércio de componentes e produtos eletrônicos, é também um lugar de reparos desses produtos. Neste episódio produzido e apresentado por Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, o bairro é o protagonista. Quem vai falar sobre ele, tratar das atividades que ali são desenvolvidas é a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que desenvolve sua pesquisa sobre o Santa Ifigênia na universidade Ohio State, nos Estados Unidos. Liliana conta também como foi a escolha sobre seu objeto de estudo e quais são os resultados encontrados até agora. Este é a primeira de duas partes da história. Acompanhe por aqui.
_____________________________________
Roteiro
[ sons urbanos caóticos aumentam progressivamente]
LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto?
[ som de caos urbano continua por um instante e depois um fade out até eu começar a falar ]
YAMA: A voz que você escutou é da antropóloga portuguesa Liliana Gil e ela tá falando sobre o Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista.
Eu sou Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e este episódio é mais uma parceria do GEICT com o Oxigênio.
[ vinheta oxigênio]
[começa a tocar Bio Unit ]
O Santa Ifigênia é um bairro antigo, que vem desde o século XIX, e já mudou muito ao longo do tempo. Mas é pelo menos desde a década de 70 do século XX um pólo de venda de produtos e componentes eletrônicos… e também de reparo. De acordo com o Portal da Santa Ifigênia, catálogo online dos comércios da região, são mais de mil lojas. A maioria delas na rua de mesmo nome. O bairro é uma referência internacional. Antigamente seu público era bastante técnico porque supria uma demanda bem mais específica. Profissionais de vários ramos iam até lá em busca de componentes para a construção e manutenção de máquinas e aparelhos elétricos e eletrônicos. Isso ainda acontece hoje, mas seu público se diversificou muito. Hoje a maior parte dos frequentadores do bairro são consumidores finais em busca de fones, tablets, celulares e outros produtos com preços bem mais baratos. Os produtos são de fontes e qualidades variadas. Há produtos originais importados legalmente como em qualquer loja da cidade, mas há também produtos contrabandeados e falsificados. Iphones de todas as idades e produtos sem marca importados da China. Mas além de tudo, é isso é frequentemente invisibilizado, há vendedores capacitados a ajudar as pessoas a resolver seus problemas tecnológicos dentro de suas possibilidades financeiras.
Você deve se lembrar de um episódio relativamente recente em que o deputado federal e polemista Celso Russomanno visitou o bairro, causando confusão e gerando memes.
[Que correção monetária, aqui é Santa Ifigênia, paizão]. Reportagem completa disponível no canal de Celso Russomanno, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
A reportagem de Russomanno reforçou um estereótipo classista do bairro, muito difundido entre parte da classe média e entre as elites paulistanas. As contradições características dos comércios de centro estão lá: por um lado, uma linha tênue entre práticas legais e ilegais. Por outro, uma democratização do acesso a eletrônicos para pessoas de baixa renda. E a gente sabe que tanto uma coisa como outra gera incômodos nas partes mais abastadas da cidade. Mas o estereótipo classista que associa o bairro a atividades ilícitas não é o único fato que tem afastado potenciais consumidores da região. Lojistas dizem que nos últimos anos o público tem diminuído consideravelmente – o que eles atribuem à prática de comprar pela internet e ao aumento da violência no centro de São Paulo, fatores que foram potencializados durante e após a pandemia. Reportagem da Folha de São Paulo de setembro de 2023 não exita em dar uma explicação logo na manchete, sugerindo que o esvaziamento do Santa Ifigênia está diretamente relacionado com a dispersão da cracolândia.
Mas o que será que uma antropóloga portuguesa, cursando doutorado nos Estados Unidos, encontrou no Santa Ifigênia que contrasta com as visões classistas sobre o bairro? Você já parou para pensar no Santa Ifigênia como um lugar que PRODUZ tecnologia? É sobre isso que a gente conversa em seguida.
[ separador baixo]
YAMA: Uma trajetória inesperada, como muitas vezes é o caso com antropólogos. Uma antropóloga portuguesa com origens na periferia industrial do sul de Lisboa, vai à universidade e acaba pesquisando ciência e arte, tema que a leva aos Estados Unidos. Já durante seu doutorado, uma escola de verão na Unicamp a impacta profundamente. Não apenas ela muda seu tema para priorizar a produção tecnológica, como passa a pensar no Brasil como um lugar ideal para fazer seu trabalho de campo. Visita a zona franca de Manaus, o complexo do Alemão no Rio de Janeiro e também uma série de espaços de ativismo hacker e de produção tecnológica em São Paulo. Entre indas e vindas ao Brasil, termina fazendo parte de seu campo etnográfico no famoso bairro paulistano de Santa Ifigênia. Mais especificamente, numa escola de reparo de celulares.
Na primeira parte de duas dessa entrevista com a professora Liliana Gil, da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, conversamos sobre sua trajetória acadêmica até chegar a São Paulo e conhecemos um pouco melhor essa face menos conhecida do Santa Ifigênia, onde as atividades de reparo ganham centralidade. Na segunda parte, conheceremos uma escola de reparo de celulares que fica no bairro e que foi pesquisada de perto pela professora – como antropóloga e como aluna.
Entre boxes infinitesimais e galerias labirínticas, ela encontrou o que chama de ecologia do reparo. Esse termo que dá nome a esse episódio a gente descobre o que é, já já. (pausa) O que você escuta agora são trechos das nossas conversas.
[ separador baixo]
YAMA: Boa tarde Liliana, obrigado por conversar com a gente hoje.
LILIANA: Sim, muito obrigada Yama pela oportunidade.
YAMA: Imagina, nós é que agradecemos pela sua disponibilidade. Antes de a gente falar sobre o Santa Ifigênia em si, eu queria que você contasse pra gente um pouco da sua trajetória como pesquisadora. Primeiramente, porque você escolheu a antropologia?
LILIANA: Eu comecei a fazer antropologia na Universidade Nova de Lisboa, onde, na verdade, eu venho, meu treino no ensino médio, acho que fala médio, foi em ciências, matemática, biologia, química. Então quando fui para antropologia, primeiro foi um ato de rebeldia, de querer me afastar um pouco das áreas mais óbvias que seria a engenharia e medicina. E eu estava muito intrigada. A antropologia oferecia cursos sobre, não é?, sobre simbologia, sobre política, sobre economia, eu estava fascinada por essas outras áreas. Culturas do mundo… eu nunca tinha viajado nessa época, então para mim era uma forma de viajar pelos livros.
YAMA: Você manteve sua formação toda na antropologia, né? Mas considerando que seu mestrado em Portugal foi na antropologia médica e que você pesquisava arte e ciência, como foi a mudança que te fez acabar pesquisando produção tecnológica no campo de estudos sociais da ciência e tecnologia?
LILIANA: Eu quando comecei o doutorado, achei que ia fazer uma tese sobre arte e ciência. E achei que ia regressar a Portugal e à Europa e fazer pesquisa em laboratórios de sci-art e espaços comunitários de ciência. Citizen-science, eram tópicos que me interessavam muito. Entretanto, teve uma summer school na unicamp precisamente, a 2014, acho eu, que foi organizada pelo Dr. Marko Monteiro, entre outros professores. E foi minha 1a visita ao Brasil e foi nesse contexto que conheci um pessoal tão bom, mas tão bom, tão maravilhoso, que fazia coisas tão interessantes com citizen science, com ciência voltada para a comunidade. Conheci nessa viagem o pessoal envolvido no garoa hacker space em São Paulo, que nessa época fazia coisas incríveis. Isso meio que deu uma volta nos meus projetos e na minha cabeça e voltei assim com uma série de interesses novos e numa discussão com meu orientador, conversando sobre isso, ele meio que me desafiou “então, mas que tal um projeto diferente do que você fez no mestrado? Explorar um outro tópico?”. E foi assim que o projeto se direcionou para questões de produção de tecnologia.
[tom]
YAMA (em off): Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia é um campo interdisciplinar do conhecimento, que se esforça em combinar o conhecimento de várias disciplinas para avaliar, em conjunto, como sociedade e ciência ou como a política e o conhecimento científico estão entrelaçados.
[tom]
YAMA: Dentre muitas possibilidades para pesquisar a produção de tecnologia no Brasil você acabou escolhendo São Paulo.
LILIANA: Devo também dizer que fiz alguma pesquisa em Manaus, na zona franca de Manaus, fiz pesquisa no Rio de Janeiro. Até teve um momento que, devo confessar, que achei que ia fazer mais trabalho no Complexo do Alemão, onde passei um mês numa colaboração com uma organização que era o Barraco 55. E foi muito duro. E depois dessa experiência eu entendi que não ia conseguir fazer essa pesquisa dessa forma, por uma série de motivos. E São Paulo acolheu-me… enfim, nós sabemos porque não é? Foi mais fácil viver em São Paulo e circular em São Paulo.
YAMA: Além dessas questões práticas, o que havia na cidade de São Paulo que te fez achar ser mais interessante para sua pesquisa?
LILIANA: Tem muita tecnologia, não é? E tem esse imaginário pós-industrial que pra mim é muito familiar, tem a ver com o contexto que eu cresci em Portugal, que é na periferia de Lisboa, periferia sul de Lisboa, que era a zona mais industrializada do país (deixou de ser). E um pouco, a razão pela qual meus avós se mudaram para lá nos anos 50 e 60. Então tinha essa coisa meio familiar e eu tenho um carinho muito especial por cidades que tiveram trajetória e tem esse tipo de cultura.
YAMA: Mas a cidade de São Paulo é gigante e tem muitas possibilidades pra se pesquisar a produção de tecnologia. Como você acabou fazendo campo no Santa Ifigênia?
LILIANA: Eu conheci através do pessoal que trabalhava no FabLab Livre, que ia a Santa Ifigênia comprar componentes e materiais. Então o Santa Ifigênia surgiu aí, uma primeira vez. Depois, mais tarde, numa conversa com o colega Dr. Carlos Freire, que agora dá aulas, acho que em Belém. Ele é que mencionou a Prime. Nessa época eu comentei com ele “ah eu gostaria de fazer mais trabalho sobre o bairro, acho esse bairro superinteressante, sei que tem toda uma história de eletrônicos, tem todas essas camadas”. E ele é que me falou da escola de reparos que acabei estudando.
YAMA (off, explicativo): Uma pequena explicação. A prime que a professora acabou de citar, é o nome fictício que ela deu para a escola de reparos que fica em Santa Ifigênia e que ela pesquisou de perto. A gente conversa especificamente sobre a escola no segundo episódio. Dar nomes fictícios a pessoas e lugares pesquisados por etnografia é uma prática comum entre antropólogos e antropólogas para minimizar os potenciais impactos da pesquisa na vida cotidiana dos colaboradores. Mas agora, voltando à conversa.
YAMA: Como foi para uma estrangeira ir ao bairro pela primeira vez?
LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto? Toda uma ecologia urbana (risos) intensa, não é?
YAMA: Percebiam de cara que era Portuguesa?
LILIANA: Sou portuguesa mas enquanto estou calada ninguém sabe, então não chamo muita atenção. Aliás, tenho histórias sobre o sotaque também muito engraçadas, de as pessoas não saberem identificar. Ah, seu portugues é tão bom, você vem da Colômbia? Do Uruguai? Então não é facilmente identificável. (…)
Mas com o Santa Ifigênia era pra mim esse espaço de muito ebulição, claramente muita coisa acontecendo, é difícil ler… porque ao mesmo tempo os prédios são um pouco degradados, não é fácil entender o que está dentro desses edifícios. As galerias, pois tem uma lojinha, e eu escrevi sobre isso na tese de doutorado, tem uma lojinha que ta lá uma senhora vendendo componentes eletrônicos desde 1965, sei lá. E tem muita coisa acontecendo que se você não passar um tempo no bairro e conhecer o bairro, não sabe que está lá. E eu acho que fiquei muito encantada com, por um lado, essa superfície de caos e muita coisa acontecendo e depois conhecendo essas camadas, abrindo e estudando sobre o bairro e percebendo que há dezenas, há muito tempo e muitas camadas de diferentes negócios, e o fato de que ficou focado em eletrônicos muito interessante. (…) E também um espaço democrático, é um espaço onde muita gente que não consegue um celular vai lá e consegue, um tablet. Tem esse lado democratizante.
YAMA: Santa Ifigênia já teve um enfoque maior na produção, mas hoje, pelo menos na superfície, o que se vê mais é a venda. O que ficou de produção de tecnologia por ali?
LILIANA: (…) Eu acho que o mais próximo que tem de produção é reparo e nós podemos considerar o reparo como uma forma de produção de tecnologia, mas é, neste momento, um bairro com venda de eletrônicos de muitos tipos, seja celulares, seja tablets, seja sistemas de vigilância tipo CCTV. Tem também muitas componentes, então pequenas partes que você pode comprar para reparar ou para montar os seus eletrônicos. Tudo isto novo e usado. Então tem, sim, partes importadas, sejam da China, depois tem toda uma discussão sobre o que vem através do Paraguai, que provavelmente são cópias. Também tem material importado de formas mais ortodoxas e depois tem material usado, também adquirido de várias formas. Inclusive, lembro-me que uma das formas de aquisição de componentes era através de… Era umas famílias que compravam bens, não sei se era a polícia federal, mas basicamente bens confiscados que são comprados em monte e depois desmontados e revendidos. Então tem de tudo. Tem vendedores de rua, camelôs, mas tem muita lojinha também mais formal, outro tipo de negócio. E, sobretudo, dentro desses prédios, desses edifícios mais antigos, que por fora parece que não têm nada, você entra e são galerias imensas de pessoal vendendo coisas, fazendo reparos, etc. Então é um misto. Há o bairro visto a partir da rua e há o bairro visto por dentro desses edifícios, que às vezes são difíceis até de circular lá dentro. Então uma das estratégias que eu tinha durante a pesquisa, eu às vezes contactava pessoas para irem comigo, tipo usuários que conheciam bem Santa Ifigênia e nós íamos passear juntos pelo bairro e pelas lojinhas.
YAMA: Você falou algo interessante que a diferença do bairro visto de fora de dentro dos edifícios. Dentro dos edifícios seriam os labirintos de boxes que você cita no artigo?
LILIANA: Sim, é sobretudo boxes dentro das galerias. Sim, sobretudo boxes. Sim, são espaços que são divididos e subdivididos e sub-sub-sub-subdivididos e subalugados.
[tom]
YAMA (em off): Foi nessa parte da conversa que eu perguntei pra Liliana sobre algo que é central no artigo dela… um termo que me chamou atenção desde início e que ela usa pra descrever o que ela viu em campo… ecologia do reparo.
[tom]
YAMA: O que é que você está chamando de ecologia do reparo? Se isso é um termo que surgiu com sua pesquisa ou se é um termo corrente na literatura, você pode falar um pouco sobre isso?
LILIANA: Sim, eu acho que não é um tema corrente da literatura. A razão pela qual eu puxei esse termo de ecologia é porque de fato o reparo para acontecer depende de todo um ecossistema. Não existe reparo ou é difícil ter reparo sem haver uma ecologia e um ecossistema que sustente esse reparo, seja através de materiais, seja através de equipamentos, seja através de contactos, seja através de conhecimento. E o conhecimento às vezes até é parte mais difícil de conseguir adquirir e obter porque vivemos numa sociedade em que os rapazes são ensinados desde pequeninos a gostar de eletrônicos e de fazer reparos e a pensar sobre eles próprios como seres técnicos e as meninas não. Eu acho que isso cria uma série de obstáculos.
YAMA: Aham
(pausa)
LILIANA: Mas a ecologia do reparo tem que ver mesmo com esta ideia de que o reparo depende de um ecossistema, depende de uma série de outras coisas acontecendo à sua volta para permitir que o reparo aconteça. E eu acho que Santa Ifigênia é de facto uma ecologia do reparo comparada ao lugar, sei lá, como Silicon Valley, enfim, também terá o seu reparo, mas se viveres num ecossistema que policia muito o reparo e não providencia os equipamentos, o conhecimento para renovar eletrônicos, o reparo não vai acontecer. Uma das coisas que eu falo muito no artigo é a importância das networks. Um dos motivos pelos quais as pessoas procuravam a escola que eu estudei é porque entravam na network de fornecedores, de equipamento e isso são redes muito difíceis de entrares, nas quais entrares. Então era nesse sentido, a ecologia do reparo. E claro, justamente, é o lado da ecologia, quanto mais repararmos, não é? Há um lado benéfico, mas sim, achei que era apropriado a noção da ecologia.
[tom]
YAMA (em off): Numa cultura econômica pautada pela obsolescência programada, as práticas de reparo se tornam práticas de resistência. Tornam o acesso à tecnologia possível para as pessoas de menor poder aquisitivo e, em sua devida proporção, reage aos planos das grandes empresas de tecnologia ao prolongar o tempo de vida dos eletrônicos, o que, por si só, dá uma dimensão ambiental para o termo ecologia. Reconhecer o Santa Ifigênia como o local de uma ecologia do reparo é resgatar uma dimensão invisibilizada do bairro e que reconhece sua importância social, cultural e econômica. E, porque não?, até mesmo ambiental.
[tom]
LILIANA: Santa Efigênia é quase… Estou a pensar agora num buraco negro com metáfora, mas talvez não seja a melhor. Mas é muito condensada, não é? É a sensação que você está num espaço que condensa todos esses elementos do ecossistema de uma forma que talvez não encontre noutros lugares com facilidade. (…) Acho que ninguém olha para Santa Ifigênia com esse carinho. Ninguém olha para Santa Ifigênia como… ou pouca gente reconhece aquele espaço como um espaço de produção de tecnologia. E acho que é parte do meu trabalho tentar puxar contra isso e tentar mostrar. Não, puxa, tipo… Sim, talvez não seja shiny, já não é aquela coisa que foi há anos atrás, mas continua produzindo tecnologia e tem essa genealogia. E é importante que a gente valide e reconheça o trabalho destas pessoas como produtores de tecnologia também
YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… como todo espaço nos centros urbanos, Santa Ifigênia guarda contradições, diversidade e diferenças. Vou começar te perguntando sobre questões raciais. Você me disse que mais cedo que há uma história da presença negra do local que é um pouco esquecida, apagada.
LILIANA: Há toda uma série de trabalhos que está sendo feito agora sobre territórios negros em São Paulo. O Instituto Bixiga está fazendo alguma pesquisa sobre o passado negro de Santa Ifigênia, que é algo que eu não conheço, porque é muito ligado à igreja. E então essas camadas é um bairro de eletrônicos com muita história, mas essa história vai assim ainda mais profundamente no tempo e tem todas essas dimensões que o centro de uma cidade como São Paulo tem.
YAMA: Você percebeu esse componente racial do Santa Ifigênia de hoje?
Eu não… sim, não. Eu vi muitos imigrantes e percebo essa componente racial. Há claramente uma divisão de trabalho, não é? Aqueles que trabalham na rua, aqueles que trabalham em lojas, os donos de lojas, que normalmente são brancos ou que serão, enfim, de origem imigrante, mas…Então, sim, eu acho que é também um microcosmos daquilo que é São Paulo, não é? Está lá.
YAMA: Na sua pesquisa você comenta em vários momentos como importavam as diferenças de gênero no bairro. Isso tanto no fato de você como antropóloga pesquisando num lugar predominantemente masculino, como nas próprias organizações locais. O que você pode nos dizer sobre as diferenças de gênero no Santa Ifigênia?
LILIANA: É assim, em geral estes espaços são muito masculinos e sobretudo na sua primeira aparência, não é? Na rua, são espaços muito masculinos os lojistas, as pessoas que estão na rua chamando clientes, há todo um… é um espaço que parece muito masculino. O que eu acho… o que eu aprendi com o tempo é que existem mulheres, mas elas talvez não estejam nos lugares mais óbvios ou não seja tão fácil de encontrar. Eu tive um momento em que eu precisei de soldar um fone que estava estragado e pensei, bem, vou a Santa Ifigênia resolver este problema, vai servir de pesquisa de campo e de coisa útil para fazer. Falei com um amigo interlocutor que conhecia bem Santa Ifigênia, fomos juntos, e ninguém queria soldar o meu fone porque era um trabalho muito minucioso e difícil. Falavam de uma tal de Priscila, tem que ir à Priscila, tem que ir à Priscila, falem com a Priscila que ela resolve. Bem, a Priscila foi dificílima de encontrar, mas a Priscila é uma mulher que faz reparo em Santa Efigênia. Estava numa box, numa galeria, parecia um labirinto, mas ela está lá e está a trabalhar, inclusive tinha mais mulher na equipa dela, na box dela. Então, as mulheres estão presentes, mas talvez não sejam nos lugares mais óbvios, talvez não sejam da forma mais pública, e o espaço enquanto mulher a fazer pesquisa às vezes se intimidava, não é?
YAMA: Você se sentia intimidada enquanto pesquisadora fazendo campo por lá?
LILIANA: Eu parto sempre, eu nunca penso muito nessas questões até me sentir intimidada. Não parto do princípio que vai ser difícil por ser mulher, nem… aliás, a minha pesquisa é sobre tecnologia e estou perfeitamente habituada em estar em espaços muito masculinos, infelizmente é assim que acontece, mas às vezes era, sim, era duro e, sobretudo, fazer entrevistas com pessoas. Eu sentia que às vezes, sabes, mulher, portuguesa, era um bocadinho difícil, era difícil estabelecer contacto, era difícil manter a conversa, sentia muitas vezes que me sentia um bocadinho minorizada, não é? E embora eu às vezes utilize essa estratégia, porque acho que para falar de tecnologia muitas vezes até dá jeito fazermos um pouco de burros para conseguir ter as conversas, nesse contexto de Santa Ifigênia às vezes foi muito difícil.
YAMA: E na escola de reparo que você pesquisou mais de perto, era a mesma situação?
LILIANA: O que eu encontrei nessa escola de reparo foi um espaço muito mais amigável para mulheres, não é? Muito mais acolhedor para pessoas que não são as pessoas típicas que frequentam o bairro.
[tom]
YAMA: Vou interromper a nossa conversa um pouquinho agora. Agora que já temos alguma dimensão do que seja o Santa Ifigênia e que sabemos que há uma ecologia do reparo no local, seguimos para a segunda parte desta entrevista, onde olhamos em detalhe para a Prime, a escola de reparos de celulares onde a Liliana pesquisou, mas também frequentou como aluna.
[baixo]
[começa Documentary]
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição.
A edição do áudio foi feita por *****. . O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
[Termina Documentary]
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link: https://drive.google.com/file/d/100tviO-2c1z7mhzMLYX8ghXrxs2jNXYJ/view?usp=sharing
O que leva ao fascínio pelos dinossauros? Crianças adoram esses animais, conhecem seus nomes, hábitos alimentares mas, conforme crescem, vão perdendo esse interesse. Pelo menos a maioria. Conversamos com a bióloga Carolina Zabini e com a psicóloga Ana Paula Machado de Campos, para entender as questões que envolvem desde o estímulo, papel dos pais, da escola e da mídia, até o desenvolvimento intelectual, que mobiliza a criança para outros temas e desafios.
_________________________________________
Roteiro:
Virei a página e soltei uma exclamação surpresa. Era o retrato em página inteira de uma criatura extraordinária que eu jamais tinha visto, o sonho selvagem de um usuário de ópio, uma visão delirante. Tinha a cabeça parecida com a de uma galinha, o corpo de um lagarto inchado, uma cauda longa e equipada com placas pontiagudas viradas para cima e as costas recurvadas eram contornadas por uma franja alta serrilhada, que parecia uma fila de uma dúzia de cristas colocadas umas atrás das outras. Na frente dessa criatura havia um bonequinho absurdo, um anão, em forma humana, olhando para o animal.
– Muito bem, o que acha disso? – gritou o professor Challenger, esfregando as mãos com ar triunfante.
– É monstruoso, grotesco.
– Mas o que o fez desenhar um animal assim?
– Estava sob influência de muito gim, eu acho.
– Ora, essa é a melhor explicação que você consegue dar?
– Bem, senhor, qual seria a sua?
Quase caí na risada, mas tive a visão de que sairíamos outra vez rodopiando pelo corredor.
Thiago Ribeiro: Esse é um trecho do livro “O mundo perdido” de Arthur Conan Doyle, publicado pela primeira vez em 1912. Provavelmente, inspirado nas aventuras de seu amigo, Percy Fawcett, Doyle conta a história de uma expedição a um platô, localizado na bacia Amazônica, onde animais pré-históricos como dinossauros e outras criaturas extintas teriam, supostamente, conseguido sobreviver aos grandes eventos de extinção do passado.
Mariana Zilli: O romance é um marco na literatura mundial e inspirou diversas obras de ficção como “Plutonia” de Vladmir Obruchev e “A terra que o tempo esqueceu” de Edgar Rice Burroughts. Esses também, por sua vez, geraram uma infinidade de filmes e séries que resgatam seus elementos e sua narrativa de um local remoto, onde seres pré-históricos de grande porte supostamente teriam sobrevivido e poderiam então ser imaginados convivendo com os seres humanos.
Thiago: Da icônica franquia de Indiana Jones, passando por clássicos como King Kong e Jurassic Park, até a famosa série estadunidense de televisão “Lost”, todas usam elementos desse enredo e têm mexido com o imaginário das pessoas ao longo de gerações.
Mariana: Mas… Qual a origem do fascínio por dinossauros, que vemos especialmente nas crianças? Como e quando diminui essa curiosa mistura de terror e excitação, que muitos de nós sentimos por esses animais? E por que, mesmo depois de adultos, eles ainda continuam a nos encantar?
Thiago: E eu sou Thiago Ribeiro. Vamos juntos nos aventurar nesse universo dos dinossauros, que permeia o imaginário de crianças e adultos, na busca de respostas sobre sua natureza.
Ana Paula Franco Machado de Campos: É interessante a gente pensar sobre esse assunto, né? Eu até fiquei elaborando que forma ou que palavra, que conceito seria. Se é o fascínio, se é a descoberta, se é o interesse, da criança pelo dinossauro. Até a curiosidade de como procurar por esse assunto foi interessante, né? É diferente você falar em fascínio, você falar interesse, de você falar motivação. O que leva, então, essas crianças pensarem ou ter interesse sobre o dinossauro?
Thiago: Essa é a Ana Paula Franco Machado de Campos. Ela é professora graduada em Psicologia pela USP e possui especialização em Psicologia Escolar e problemas de aprendizagem pela PUC CAMPINAS. Desde o início da sua carreira, a Ana Paula tem se voltado para a psicologia escolar, área pela qual demonstra muito carinho.
Mariana: Ana Paula, você se lembra de ter passado por alguma fase na infância que tenha demonstrado esse interesse hiper focado em dinossauros? Ou conhece alguém ou tem familiares aficionados por essas criaturas?
Ana Paula: Eu, particularmente não, né? Tenho sobrinhos que têm, eles brincam. Têm os bonecos. Mas não faz parte desse fascínio. A gente sabe de crianças que realmente sim, conhece os nomes, a alimentação, como é que eram. O que eu acho interessante de trazer para nossa fala, para a nossa conversa, é a gente pensar o quanto a escola está contribuindo ou não para isso, né?
Mariana: Em um trabalho de 2008, publicado na revista Cognitive Development, envolvendo a parceria das Universidades de Indiana e do Wisconsin, os pesquisadores acompanharam o comportamento de 215 crianças de 4 anos ao longo de 2 anos para analisar a intensidade e duração dos interesses relacionados ao domínio conceitual em crianças pequenas. Dentre os principais resultados, foi possível detectar que cerca de 40% das crianças mantêm interesse em domínios conceituais durante parte do período pré-escolar.
Thiago: Sim. Domínio conceitual, que pode ser explicado como sendo o conjunto de conhecimentos que representa as explicações científicas sobre o mundo natural. Em outras palavras, seria como teorias, princípios, leis, ideias são usados para raciocinar com e sobre o tema que se estuda. Já os domínios considerados como não-conceituais podem incluir desde atividades manuais como colagens e pinturas, habilidades de leitura e escrita, prática de esportes, assistir televisão ou ainda a participação em jogos com regras estabelecidas.
Mariana: Então, se a criança domina informações sobre os nomes científicos dos dinossauros, seus hábitos de vida ou até mesmo o período e região que viveram, estamos nos referindo ao seu interesse em apreender, conceitualmente, essas informações?
Thiago: Isso mesmo! O mais interessante é que o trabalho demonstra uma clara diminuição desse tipo de interesse após a transição para a escolaridade formal. Já o interesse focado em domínios não-conceituais não demonstraram tanta queda.
Mariana: Nossa! Isso é realmente interessante. Mas, o estudo mostrou por que isso acontece?
Thiago: De acordo com os pesquisadores, as crianças com interesses conceituais podem se encontrar em um dilema no início da vida escolar. Elas podem estar muito interessadas em um domínio específico como, por exemplo, dinossauros, carros ou cavalos e estarem acostumadas a receber suporte individualizado sobre o tema de interesse. Geralmente dos pais ou professores da pré-escola. Os interesses conceituais são dos poucos interesses da primeira infância, onde uma criança tende a confiar nos pais ou em outras pessoas mais velhas para fornecer uma quantidade significativa de informações relevantes.
Mariana: Hum… entendi. O ensino fundamental envolve mais crianças na sala, objetivos curriculares mais rigorosos, aumento de tarefas, além do estímulo voltado para atividades sociais. E aí sobra pouco tempo para que as crianças façam perguntas relacionadas aos seus interesses particulares e recebam respostas individualizadas.
Thiago: Pois é. Ainda, crianças pequenas com hiper foco em interesses conceituais particulares também podem experimentar novas pressões sociais à medida que começam a fazer amizades na escola primária. Os amigos são uma importante fonte de apoio social e as amizades, geralmente, são baseadas em um terreno comum. As outras crianças podem não estar muito interessadas em sapos, cavalos ou dinossauros. Assim, as crianças podem deixar de demonstrar, intencionalmente, seus interesses e conhecimentos para cultivar amizades em desenvolvimento.
Mariana: Eu ainda não tinha parado para pensar nesse dilema das crianças. Faz bastante sentido, mas podem ter outros fatos envolvidos, certo? Como que o contexto escolar pode estar atuando na formação das crianças nesse sentido, Ana Paula?
Ana Paula: Na Educação Infantil existe essa essa vontade, né essa curiosidade. De exploração, de conhecer, de buscar, de ter a dúvida. A gente vê isso muito na criança como uma ferramenta que eles têm para conhecer o mundo.
Helena Barbosa: Meu nome é Helena Mariana Barbosa.
Moyra, mãe da Helena: Quantos anos você tem? Seis aí por que você gosta de dinossauros?
Helena: Eu gosto de dinossauros, porque eu não gosto de bonecas. Esse é meu Tiranossauro Rex, o tirano “raw raw raw”.
Moyra: E você sabe o nome de outros dinossauros?
Helena: Sim. braquiossauro, estegossauro.
Thiago: E você, Carol. Não se lembra de ter essa paixão por dinossauros, esse encantamento, na infância?
Carolina Zabini: Na infância, não. Especificamente por dinossauros não. Eu me lembro que eu gostava muito da parte assim de observar a natureza e coletar rochas e minerais. Então, eu me lembro de ter uma coleção de pedras, né. Eu chamava de pedras na época. Agora, eu até me sinto estranha falando pedras, uma coleção de rochas, e talvez isso tenha me levado para essa área. Eu entendo que as crianças gostam muito da natureza e eu acho que, nessa visão, eu também gostava muito de tentar entender o meio ambiente, né?
Thiago: Essa é a Carolina Zabini, ela é professora do Instituto de Geociências da Unicamp, no Departamento de Geologia e Recursos Naturais. Sua principal linha de pesquisa envolve o estudo de bacias sedimentares, desenvolvendo trabalhos na área da paleontologia. A Carolina também tem realizado um trabalho de divulgação científica, coordenando o Programa Tempo Profundo. A ideia é divulgar as Geociências, a partir de ações online e presenciais através de lives, oficinas online e presenciais, postagens nas redes sociais, sorteios e exposições científicas.
Mariana: As rochas sedimentares são um tipo muito especial de rocha. Nelas também podem se acumular restos de seres vivos que habitavam essas regiões durante um passado muito distante. Com o passar do tempo (na escala dos milhões de anos) esses restos podem ser encontrados e analisados por pesquisadores como a Carolina. O estudo desses restos de vida impressos nas rochas pertence ao que é chamado de Paleontologia que inclui, por exemplo, a análise dos fósseis e vestígios desses seres vivos.
Thiago: Uma dessas exposições organizadas pela Carolina, que recebeu o nome de “Dinossauros (?)” e foi realizada em 2018 no Instituto de Geociências da UNICAMP. Além do sucesso com o público, a exposição rendeu a produção de um trabalho de mestrado. Nesse trabalho, o Rafael Ribeiro, que foi orientado pela Carol, buscou entender como a exposição poderia contribuir, como estímulo, para a aprendizagem dos visitantes sobre paleontologia.
Mariana: A exposição foi organizada em colaboração com o professor Luiz Eduardo Anelli, da USP, que cedeu sua coleção de modelos de dinossauros para que a Carolina levasse para a Unicamp. O Museu Exploratório de Ciências da Unicamp também participou, especialmente nas monitorias. Inicialmente focada em perguntas abertas para estimular discussões, a abordagem foi adaptada para oferecer respostas cientificamente embasadas, visando atender, principalmente, estudantes em fase escolar.
Carolina: Para que servem os chifres, por exemplo, né? Defesa ou ataque? A gente pegou um artista para representar aquelas características que a gente queria nos banners, que vinham associados aos bonequinhos, e aí o próprio desenho e a pergunta se somavam para instigar o visitante, né? Então as crianças e os seus pais chegavam e eram instigados por aquela pergunta. Para que serve essa estrutura? Ou então, você consegue enxergar alguma semelhança entre o conjunto de dinossauros que tem aqui? Uma das perguntas que a gente fazia também: Será que todo mundo que está exposto aqui, é dinossauro? Porque tem muito essa coisa de tudo que é antigo e parece um lagarto todo mundo fala que é dinossauro e não é assim, né?
Mariana: Além dessa clássica confusão, muitas vezes, os dinossauros também são, de alguma forma, associados à ideia de obsolescência, antiquado, inapto ou até mesmo, falho. Quando alguém se refere a uma pessoa como “um dinossauro”, essa expressão informal, geralmente está associada à ideia de Antiguidade ou Experiência: uma maneira de reconhecer a longa experiência ou antiguidade dessa pessoa em uma determinada área.
Thiago: Junto com a confusão que se faz ao incluir outros répteis como mosassauros, pterossauros e crocodilos como todos sendo do grupo dos dinossauros, a ideia de que sua extinção teria sido uma consequência de inabilidade para se adaptar às transformações nas condições ambientais, talvez sejam os equívocos mais marcantes sobre os dinossauros.
Mariana: Não existe uma interpretação científica amplamente aceita que caracterize os dinossauros como estúpidos ou desajeitados como uma explicação para sua extinção. Essas características são geralmente consideradas simplificações ou estereótipos imprecisos. A ciência paleontológica trata os dinossauros como animais adaptados ao seu ambiente, bem-sucedidos em suas épocas específicas. No entanto, ao longo da história, especialmente antes dos avanços significativos na compreensão da paleontologia e da biologia evolutiva, algumas representações populares ou culturais dos dinossauros podem ter exagerado características como a estupidez ou o desajeitamento. Essas interpretações são agora consideradas desatualizadas e imprecisas.
Carolina: Então, acho que isso também é interessante, que a gente mostrou um pouco naquela exposição, que é a evolução de como a gente interpretava a forma externa, a aparência dos dinossauros, de sei lá 50 anos para cá, se a gente olhar as reconstruções os dinossauros pareciam grandes lagartos. Inclusive nas suas formas de se movimentar, do habitat em que eles viviam. Então, eles tinham aquela aparência mais monótona, uma cor só, com aquela pele, com aquela textura de jacaré mesmo e os muito grandes estavam sempre dentro de lagos, porque se imaginava que eles eram tão imensos que eles não conseguiriam suportar o próprio peso do corpo, né?
Thiago: A palavra dinossauro tem origem em duas palavras no idioma grego “deinos” “sauros” que pode ser traduzido como lagarto feroz, ou lagarto terrível. No latim, utilizado pela comunidade científica, o grupo que envolve esses seres recebeu o nome “Dinosauria”. Por mais de 160 milhões de anos, esse foi o grupo de animais dominantes em nosso planeta. Um exemplo de sucesso ao se adaptar e sobreviver ao longo de tanto tempo. Para se ter uma comparação, os hominídeos, grupo ao qual os seres humanos fazem parte, surgiram apenas há cerca de 3,5 milhões de anos.
Mariana: É compreensível que dinossauros sejam associados a outros répteis como crocodilos e pterossauros. Os três compartilham características em comum como o fato de botarem ovos e possuírem a pele de aspecto escamoso. Estão todos, inclusive, dentro de um grupo maior, representado pelos arcossauros. No entanto, hoje sabemos que agrupar todos como dinossauros é um equívoco. Aqui ouvimos a Carolina novamente.
Carolina: tem um livrinho. Que que mostra isso também, se você precisar essas aparências essas cores eram todas meios cinzas todo todos meio apáticos e, de Jurassic Park digamos para cá, né? Lógico, na ciência um pouco antes mas, o que aparece na cultura pop, já marca do primeiro filme para cá, os dinossauros aparecem como? Coloridos, ágeis inteligentes, né com penas. Então, toda essa mudança também foi uma mudança científica. Num primeiro momento, o grupo Dinossauria era interpretado como mais aparentado realmente com crocodilos, jacarés e afins. E hoje, não. A gente sabe que eles são um ramo diferente.
Thiago: Talvez o fóssil mais famoso do mundo seja o do Archaeopteryx. Diferentemente dos demais esqueletos de dinossauros escavados até então, este demonstrava que seu corpo era coberto por penas. Essa evidência, além de comprovar um parentesco evolutivo entre aves e répteis, também trazia um elemento chave que reforçava a explicação da origem e diversidade dos seres vivos trazida por Charles Darwin no livro Origem das Espécies, publicado apenas dois anos antes da descoberta do Archaeopteryx.
Mariana: A primeira publicação de Origem das espécies foi em 1859 e a descoberta do fóssil em 1861, mas a discussão em torno dessa ancestralidade das aves enquanto dinossauros emplumados durou décadas na comunidade científica. Nós vemos o reflexo desse debate no primeiro filme da franquia Jurassic Park, de 1993, quando o Dr. Grant, ao analisar um fóssil de velociraptor, é ridicularizado ao mencionar que estes aprenderam a voar.
Thiago: O caso só foi encerrado em 2008, em trabalho publicado na revista Science, quando as análises genéticas do poderoso tiranossauro rex comprovaram que ele tinha mais genes em comum com avestruzes do que com répteis atuais como os jacarés. A descoberta não foi uma novidade para os paleontólogos, já que o acúmulo de evidências fósseis dava confiança cada vez maior de que as aves eram descendentes de dinossauros carnívoros ou, como eles gostam de dizer, que as aves são efetivamente dinossauros vivos.
Carolina: Então, talvez as crianças de hoje, as mais novas, já não percebam dinossauros muito aparentados com lagartos, mas da minha geração ou um pouquinho antes, ainda acho que que existia uma ligação mais próxima né desses grupos.
Mariana: Realmente, é muito interessante pensar em como os dinossauros se apresentam para cada geração em função do avanço das interpretações científicas e suas representações pela cultura pop. E perguntamos à Carolina a que ela atribui todo esse interesse por dinossauros. É mais pela exposição, pelo contato com esses animais? Por exemplo, o mercado com a cinematografia, animações, a cultura pop, que possuem muitos produtos que estimulam as crianças ou, existe esse interesse próprio nas crianças, mais natural, e a cultura pop e o mercado entendem esse fascínio e aproveitam para explorá-lo?
Carolina: Sim. Acho que acho que os produtos estão aí porque as crianças realmente gostam, né? Mas a minha opinião particular é que a criança gosta de entender o mundo. Então, se ela tem mais contato com a natureza, então ela vai querer entender essa natureza. E quando a gente é pequeno, a gente não tem aquela impressão de que o tempo passa diferente? Que tudo passa mais devagar? Pra mim, é porque a quantidade de coisas que a gente aprende todo dia é muito grande, né? Mas acho que num primeiro contato, o que impressiona é realmente o tamanho deles, né, a forma diferente do que a gente tem disponível, e o fato deles serem reais, né? Eles não estão convivendo com a gente hoje na forma como eles eram. Mas eles existiram.
Simone Pallone: Eles ainda existem?
Pedro: Não!
Simone: Não? Por que eles não existem mais, você sabe?
Rafael: Porque eles já foram extintos?
Simone: Já foram extintos, é? E se eles ainda existissem, você ia gostar?
Rafael: Não!
Simone: Não? E você, Pedro? Você gostaria que ainda existissem os dinossauros?
Pedro: Hã, hã! Não!
Simone: Não? Por quê?
Pedro: Por que eles são muito perigosos!
Thiago: E para você, Ana Paula? Em que medida a gente pode pensar que esse interesse é mais estimulado pela mídia e pelo mercado de brinquedos, por exemplo, ou isso é, de fato, uma coisa da infância mesmo?
Ana Paula: É, eu acho que são essas duas possibilidades, né? Existe a motivação para aprender coisas novas ou mesmo motivação para aprender sobre onde que a gente está, de onde a gente veio, para onde a gente vai. E aí entra o dinossauro. E é um passado muito distante, né? E inclusive não existindo mais, né? Como é que eu consigo imaginar possibilidades de alguma coisa que aconteceu no passado muito distante a partir do que a gente tem hoje como vestígios que ficaram desse passado? Então, é um olhar investigativo e provocativo muitas vezes, onde você trabalha assim com o real, mas você trabalha com imaginário muito forte, né?
Helena: O triceratops também é herbívoro, mas o Tiranossauro Rex vem e come ele, né?
Moyra: Os dinossauros ainda existem?
Helena: Não. Eu sou Tiranossauro Rex, ele é muito legal. Tiranossauro Rex.
Moyra: E você gostaria que eles existissem?
Helena: Sim.
Mariana: Geralmente, esses interesses acabam sendo mais reforçados pela família. Quando nos colocamos na posição de questionadores, demonstrando interesse e perguntando o nome desses dinossauros e seus hábitos, ou ainda, o nome dos veículos e suas funções, colocamos a criança no lugar de portadora daquele conhecimento. Um papel de protagonismo, como autoridade no assunto, e isso é muito poderoso.
Thiago: Além da categoria de interesse focada em questões conceituais, como no caso dos dinossauros, nomeando cientificamente, descrevendo suas dietas e demonstrando suas diferenças comportamentais, o trabalho dos pesquisadores da universidade de Indiana e do Wisconsin identificou que as crianças pesquisadas também costumam encenar aventuras de simulação com seus pequenos dinossauros e outros animais de plástico.
Mariana: De fato, essas encenações, denominadas como sociodramáticas, representaram maior frequência ao longo dos dois anos da pesquisa. Nessas atividades, as crianças criam um cenário onde simulam uma aventura e ela própria atua, dando vida a cada um dos seus personagens. Algo como um teatro de fantoches.
Carolina: Eles não estão convivendo com a gente hoje, na forma como eles eram, mas eles existiram. Então você consegue imaginar, no Imaginário da criança, o que é isso, um dinossauro gigantesco, vivendo no mundo, num passado longe mas, que realmente aconteceu, né? E aí, os dinossauros como eles são gigantescos, diversos, ferozes, eu acho que isso atrai muita atenção.
Thiago: Mas então você acredita, Carolina, que o fato deles serem enormes, ferozes, isso acaba atraindo as crianças? Por exemplo o leão, mesmo sendo uma fera, muitas vezes, não gera esse mesmo fascínio quanto os dinossauros.
Carolina: É por isso que o tiranossauro rex é tão famoso, né? Pelo tamanho dele e a quantidade de fósseis que eles já encontraram completos, né? Então, nesse sentido, eu acho que a criança gosta do que assusta. Do que traz aquele poder da imaginação, para para ela poder criar o que ela quiser, né. E, o dinossauro, o que a mídia passa muito é isso, né. De que eles são enormes, de que eles são ferozes o tempo todo. Então eu acho que é isso. O contato, né que as crianças têm deve vir mais da mídia do que dos museus, né das instituições de ensino de pesquisa. E aí acaba levando esse viés, né?
Thiago: Carol, você acredita que a criança, quando é colocada em em locais não-formais de ensino, como museus e exposições, isso estimula o interesse não só por dinossauros mas também por ciências em geral?
Carolina: Sim sim. Eu entendo que sim. Inclusive, hoje em dia a gente tá pensando muito na no ensino afetivo, né. Da gente trazer aquele apelo, de realmente emocionar. Trazer as emoções das crianças, enfim das pessoas.
Mariana: A Carolina também nos contou um pouco sobre uma pesquisa de mestrado desenvolvida em 2018 sobre como os temas apresentados pela exposição “Dinossauros (?)” estavam sendo interpretados pelas pessoas que visitavam o espaço, dando destaque para aqueles temas mais frequentes durante o roteiro. A gente gravou então algumas das visitas das escolas e a interação com o monitor. E aí, a gente percebeu que alguns dos temas que os monitores ou que as crianças traziam, não eram exatamente aqueles que a gente queria passar. Mas, mesmo assim existe uma aprendizagem, um processo de aprendizagem, no fato delas estarem naquele contexto, né? Então, só delas terem saído da escola, estarem conversando com os colegas sobre os temas. Esse processo eu acho que ele auxilia na pessoa compreender algum tema, quando ela vai atrás da informação depois né? Então ela tem um começo, né. Uma fagulha ali do conhecimento e é ela que vai criar as suas conexões depois.
Thiago: E como você avalia essas grandes exposições com dinossauros mecânicos, com efeitos sonoros e outros tantos recursos para atrair visitantes, geralmente em locais de maior circulação como shoppings? Muitas vezes elas são grandiosas mas que carecem de consultoria para trazer informações mais atualizadas, embasadas cientificamente.
Carolina: Se a gente pudesse atrelar, né? O que a gente tem de conhecimento científico em uma exposição com a visibilidade que essas têm. Porque, normalmente, elas são em locais que são muito visitados, né. em shoppings, algumas delas você não tem que pagar né? Então, se houvesse de fato, uma parceria, seria maravilhoso. Agora, da forma como algumas são montadas, é bastante questionável. Porque elas acabam misturando o imaginário, colocando dragões, né? Já vi umas com todos os tipos de personagens pop junto com dinossauros. Quer dizer, aí não tem valor científico nenhum, né? Aí, é mais para realmente a criança se divertir fisicamente no espaço.
Mariana: De fato, esses espaços não-formais são fundamentais para expor os estudantes a novos contextos de aprendizagem, estimulando a curiosidade e favorecendo o ensino através da troca de vivências. Daí a importância de expor as crianças, independente do seu estágio de desenvolvimento, a esses diferentes estímulos. Não é mesmo, Ana Paula?
Ana Paula: Eu posso estar num ambiente onde sim, eu sou estimulado. Onde sim, eu tenho contato com eh o conteúdo, por exemplo dinossauro, por exemplo, qualquer outro assunto. Eu tenho livros à minha disposição, eu tenho brinquedos, eu tenho jogos ou tem alguém que jogue comigo, tem alguém que leia para mim. Porque também não adianta você só ter o brinquedo e o livro e lá tudo maravilhoso para você e você não ter o adulto muitas vezes, né? Ou até uma outra criança ou mesmo professor não faz isso.
Mariana: Depois dessa fala da Ana Paula eu me peguei aqui pensando: “Eu gostava tanto de colecionar carros. Sabia o nome de todos os modelos, fabricantes. O que aconteceu?” “Quando foi que eu perdi o interesse nesse tema?”
Thiago: Não é raro que esse tipo de pensamento. E justamente quando estamos em um momento lúdico com as crianças, é mais comum que surjam lembranças de gostos que tínhamos quando criança.
Ana Paula: Mesmo até a fase adulta a gente perde muito esse espaço de prazer mesmo, sabe? De você fazer alguma coisa por prazer, de fazer alguma coisa porque você gosta, fazer alguma coisa que te traga um simbolismo qualquer, né? Prazer mesmo, e é um resgate, talvez, que a gente precisa ter. Nós adultos. Mas acredito que a gente voltando esse olhar mais para infância, a infância ser tratada como infância. O lugar em que a infância tem e a importância que a infância tem e a infância, que eu estou dizendo, até na fase da escolarização. Também são crianças. Que espaço está tendo a investigação? Que espaço que tem para a curiosidade? Que espaço que eu tenho para eu construir, para eu responder, pra eu buscar aquilo que eu tenho como motivação.
Mariana: A Ana também destaca como a entrada dos celulares no cotidiano das famílias tem influenciado no brincar, no imaginar, no faz-de-conta. Do quanto esse ambiente virtual pode estar tirando a possibilidade de interação e da simbolização no mundo real.
Ana Paula: Eu vi uma pesquisa que foi feita. E perguntou para as crianças, né, do que elas gostavam mais de brincar, qual era o brinquedo preferido não me lembro agora exatamente a porcentagem mas, mais da metade, é do celular, entendeu? Hoje, talvez, não sei, se a gente for perguntar para as nossas crianças o que você mais brinca. Até para o adulto, viu? Porque muitos pais, em escola, e essa é uma queixa assim frequente, super frequente, o quanto tempo eles ficam na com o celular. Inclusive não brinca mais. Inclusive não jogam mais tabuleiro.
Thiago: Então, Ana, um bom caminho seria criar mais espaços e momentos para as crianças demonstrarem suas habilidades nesses temas de interesse?
Ana Paula: É, na verdade, eu acho que a gente tem que abrir mais eh, eu falo que abrir janelas, né? Como um espaço para que esse esse saber científico, que a gente pode chamar de científico, né, ou essa curiosidade da descoberta, do fazer científico, tenha mais lugar dentro da escola.
Abrir possibilidades de exploração desse olhar científico, de interesse mesmo. E aí, acrescento, daquilo que é de interesse dos alunos. Que não só do nosso interesse. Então, de repente, o assunto dinossauro é um interesse deles, assim como outros que eles podem trazer. As crianças, principalmente nessa faixa, estão efetivamente sendo estimuladas a explorar, aquilo novo, aquilo que é de interesse delas,isso é muito legal. Vamos estudar sobre isso? Vamos descobrir mais sobre isso? Vamos entender melhor o que o dinossauro comia? Onde eles foram descobertos? Vamos descobrir isso juntos, né? Não já com a coisa pronta.
Mariana: Agora para finalizar. Ana, você gostaria de deixar uma mensagem para os nossos ouvintes?
Ana Paula: Eu acho que é um convite que eu queria fazer é esse a gente olhar pra pra gente mesmo, né? Como é que eu tô lidando com as crianças que estão ao meu redor? Que lugar, que espaço, que valor eu estou dando para o brincar, mesmo? Que valor eu estou dando para essa interação entre as crianças? Que lugar eu estou dando para essa interação entre as crianças e nós adultos? Eu ,adulto, quanto do meu tempo eu estou dispensando para isso, de fato, efetivamente, por brincar para o ler né?
Thiago: Bom, nós vamos ficando por aqui. Gostaríamos de deixar o nosso muito obrigado a todos vocês por nos ouvir e um agradecimento especial para a Helena e sua mamãe Moyra que nos presentearam com essa entrevista muito fofa. Também gosto muito de dinossauros, Helena! O meu favorito sempre vai ser o triceratops.
Mariana: Agradecemos também as outras crianças que ouvimos para fazer o episódio: o Pedro, o Rafael e o Pietro que estavam na exposição dos dinos e nos transmitiram todo esse medo e admiração de estarmos próximos desses fascinantes animais.
Thiago: Esse episódio foi roteirizado e apresentado por mim, Thiago Ribeiro. A revisão é da Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. Os trabalhos técnicos são da Carol Valentim Cabral e do Eyder Gomes Lopes, bolsistas do Serviço de Auxílio ao Estudante da Unicamp. A edição de áudio final, do Octavio Augusto Fonseca. A trilha sonora do Soundcloud e da Biblioteca de áudio do Youtube. A narração do trecho do livro de Connan Doyle foi feita pelo Yama Chiodi e pela Simone Pallone. O Oxigênio tem apoio da SEC – Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e do SAE – Serviço de Apoio ao Estudante. Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts preferida. Procure a gente nas redes sociais. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e obrigado por escutar!
Você sabia que, assim como os humanos, peixes expressam comportamentos alterados – inclusive alguns bem complexos – quando estão sentindo dor?
Na terceira parte do episódio A mente do Peixe, Caroline Maia e João Saraiva trazem informações sobre a capacidade dos peixes de aprender a evitar a dor. E mostram as respostas desses animais ao receberem analgésicos após um estímulo doloroso.
O Fish Talk é um podcast parceiro do Oxigênio e The Fish Mind, ou A mente do peixe é um programa desse podcast com foco na capacidade que os peixes têm de sentir dor e experimentar outros estados emocionais. Ao longo da série, vamos ouvir também sobre suas habilidades cognitivas.
O Fish Mind faz parte de um projeto que é fruto de uma colaboração do Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) no Brasil com a FishEthoGroup, uma associação sem fins lucrativos que trabalha em prol do bem-estar dos peixes, preenchendo lacunas entre a ciência e as partes interessadas no setor da aquicultura, entre eles: produtores, certificadores, comerciantes, ONGs, decisores políticos e consumidores. A entidade foi criada em 2018 e está sediada em Portugal.
Quem apresenta o episódio são a Caroline Maia e o João Saraiva, pesquisadores da Associação FishEthoGroup. A introdução do episódio foi feita pelo Luiz Henrique Queiroz Leal.
Conheça agora o The Fish Mind Programme e acompanhe todos os episódios, você vai descobrir muitas curiosidades sobre peixes!
Se não conseguir aguardar a publicação dos episódios pelo Oxigênio, vá direto ao site do programa: https://fishethogroup.net/whatwedo/dissemination/fishtalk/
Vamos ao episódio!
______________________________________
João: Sabia que, assim como os humanos, os peixes aprendem a evitar estímulos dolorosos? Eles até escolhem receber analgésicos quando têm essa chance em uma situação dolorosa!
Carol: Neste episódio do programa ‘A mente do peixe’, vamos falar sobre a capacidade dos peixes de aprenderem a evitar a dor e sobre suas respostas ao receber analgésicos após um estímulo doloroso.
João: E eu sou o João Saraiva, e começa agora o episódio Os peixes também sofrem – parte 3!
Carol: Quando temos dor em uma mesma condição que se repete, apenas algumas experiências são suficientes para entendermos que, ao evitar essa condição, evitaremos também a dor. E isso já foi
João: Os cientistas desse estudo investigaram os comportamentos de peixinhos dourados e de trutas ao receberem choques elétricos em regiões específicas dos seus aquários. Surpreendentemente, as
Carol: Nesse mesmo estudo, os pesquisadores também descobriram que esses peixes eram capazes de modular essa resposta de evitação de acordo com as circunstâncias e o contexto. As trutas – que são
João: Por outro lado, os peixinhos dourados não expressaram essa resposta. Em vez disso, eles continuaram evitando os choques, independentemente de estarem perto ou longe de outros
Carol: Isso é fascinante! E vale mencionar que já existem algumas evidências científicas indicando que quando os peixes passam por uma situação muito ruim, apenas uma única experiência pode ser
João: Mas e quanto a receber analgésicos e voltar a se comportar naturalmente após um estímulo doloroso, assim como fazem os humanos? É possível que os peixes também façam isso?
Carol: Sim! De fato, já existem estudos mostrando que uma vez que o estímulo doloroso foi percebido pelos peixes, desencadeando assim alterações comportamentais evidentes em resposta, o
João: O estudo ‘Novel object test: examining nociception and fear in the rainbow trout’, publicado em 2003, mostrou que a truta arco-íris ao tomar analgésicos, volta a expressar seu medo natural de se
Carol: E não para por aí! Existem evidências científicas de que os peixes são capazes até de escolher receber analgésicos quando estão sentindo dor e têm a oportunidade de fazer isso! Algo que já foi
João: Esse tipo de resposta, assim como todas as outras que foram apresentadas neste episódio, são uma indicação clara de que os peixes expressam muito mais do que um mero reflexo quando experimentam estímulos nocivos. Eles realmente sentem dor, tentam aliviá-la e aprendem a evitá-la!
Carol: Além de todas essas descobertas incríveis que dão suporte ao fato de que os peixes sentem dor, é importante considerar que a dor não é a única causa de sofrimento… Os peixes também são capazes
João: Este episódio foi apresentado por mim, João Saraiva, e pela Carol Maia, que também o coordenou. Nós somos da FishEthoGroup Association.
Carol: Você pode acompanhar a Associação FishEthoGroup em nossas redes sociais. Nós estamos no Facebook (facebook.com/fishethologyandwelfare), Instagram (@fishethogroup) e no Twitter
Neste segundo episódio da série Termos Ambíguos vamos falar sobre a origem e o uso da expressão Cristofobia que, assim como Ideologia de Gênero, faz parte do repertório da extrema direita transnacional e desempenha um papel importante em estratégias políticas. Esses e outros termos que vamos tratar nesta série são poderosos e capazes de evocar emoções e produzir temores e ansiedades infundadas nas pessoas.
Para tratar do termo Cristofobia, entrevistamos Janaina Tavares, doutoranda no programa interdisciplinar de linguística aplicada na UFRJ e autora do verbete Cristofobia, no Termos Ambíguos do Debate Político Atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia, com Ronaldo de Almeida, professor de antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e com Vladimir de Souza, pastor da Igreja da Redenção Baixada, do Rio de Janeiro.
_____________________
Henrique Vieira: “O Brasil é um país cristofóbico. Essa é uma expressão muito utilizada por setores evangélicos fundamentalistas. Eles acham que o nosso país é cristofóbico porque as mulheres estão lutando pelos seus direitos, porque os LGBTs, gays, bissexuais, travestis, transexuais também se organizam e lutam pelos seus direitos. À medida que essas pautas avançam, eles acham que o Brasil está se tornando um caos”.
Daniel Faria: Essa fala é do pastor Henrique Vieira, que é ator, poeta, professor e deputado federal do Partido Socialismo e Liberdade. Ele foi eleito em 2022, pelo Rio de Janeiro. É com ele que começamos este segundo episódio do Termos Ambíguos, o podcast que mergulha nas origens das expressões e conceitos que moldam nosso mundo. Eu sou o Daniel Faria, e esse podcast é uma parceria entre o podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW, na sigla em inglês. Aqui vamos explorar termos que estão muito presentes no nosso dia a dia, mas principalmente no debate político atual. O termo que vamos tratar hoje é CRISTOFOBIA. Mas será que isso existe mesmo?
Tatiane Amaral: Eu sou a Tatiane Amaral e vou apresentar esse podcast com o Daniel. Para começar, podemos destrinchar a palavra Cristofobia para saber a sua origem, a partir da descrição que encontramos no dicionário de Termos Ambíguos do Debate Político Atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia, o objeto principal desta série. Segundo o dicionário, “o sufixo ‘fobia’ vem da palavra grega phobos, que significa medo ou aversão extrema a certos objetos, situações, animais ou pessoas. Para a psiquiatria, as fobias estão associadas ao aparecimento súbito de um medo irracional, injustificado e persistente”.
Daniel: Tipo aracnofobia, que é fobia de aranhas ou claustrofobia, que é o pânico de lugares fechados ou com pouca circulação. Mas foi nos anos 1970 que o psicólogo George Weinberg criou o neologismo homofobia, para descrever formas extremas de aversão a pessoas homossexuais. E, nos anos 2000, o termo se desdobrou em lesbofobia e transfobia para descrever a discriminação contra mulheres lésbicas e pessoas trans. Sim, esses termos denotam aversão extrema a pessoas, simplesmente por não se encaixarem em um padrão social heteronormativo.
Tatiane: E vem daí o termo que vamos decifrar neste podcast: Cristofobia, que é usado para denotar supostas manifestações de aversão a Cristo. Esse uso distorce o sentido político do termo fobia, pois não faz sentido usar essa definição para descrever sentimentos em relação a figuras históricas, mitológicas ou religiosas, como é o caso de Jesus Cristo.
Daniel: Porém, isso não se aplica a “cristianofobia” termo usado num documento publicado em 2003, pelo relator especial da ONU para liberdade religiosa. Nesse texto, Cristianofobia indica aversão a pessoas que professam religiões cristãs, fazendo um paralelo correto com as manifestações de islamofobia e semitismo. Mas no Brasil, desde o começo dos anos 2010, o termo usado por vozes evangélicas ultraconservadoras tem sido, de fato, Cristofobia para nomear as supostas aversões, repulsas ou até mesmo perseguições aos cristãos e ao cristianismo.
Tatiane: Os dados apresentados pelo relator especial da ONU naquele ano, assim como estudos e fatos posteriores nos dizem que a Cristianofobia é uma realidade em várias partes do mundo. O caso mais conhecido é da comunidade cristã dos Azidis que foi perseguida quando a milícia jihadista conhecida como Estado Islâmico ocupou territórios no Iraque. Mas há também registro de perseguição aos cristãos na Nigéria, China e até mesmo no Marrocos. Contudo, cabe perguntar se isso se aplica mesmo ao Brasil.
Janaina Tavares: As sutilezas perigosas como você mesma colocou, estão no fato de que existe mesmo cristofobia em diversos países, né? como no Irã, Nigéria, China, Marrocos, entre outros. A lista é bem grande.
Daniel: Esta foi a Janaina Tavares, autora do verbete Cristofobia, que compõe o Dicionário de Termos Ambíguos. Conversamos com ela para saber um pouco mais sobre este termo e seus usos problemáticos no Brasil
Janaina Tavares: Olá, me chamo Janaina Tavares, sou moradora da Baixada Fluminense, evangélica há oito anos, e faço doutorado no programa interdisciplinar de linguística aplicada na UFRJ. Contribuo como orientadora de projetos na iniciativa de Educação antirracista Baixada Lab. Faço parte da igreja cristã Redenção Baixada e pesquiso letramento de sobrevivência de esperança na produção cultural e no chão das igrejas progressistas.
Daniel: A origem do termo Cristofobia remonta ao início do século XXI. Em 2003, nos Estados Unidos, um pastor da Igreja Metropolitana usou o termo “cristofobia” para descrever como as comunidades LGBT+ rejeitavam as igrejas cristãs que repudiavam, radicalmente, as homossexualidades, lesbianidades, transexualidades. E, claro, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas muito rapidamente o termo passaria a ser usado por vozes conservadoras, para criticar visões políticas que, segundo elas, negavam o legado do cristianismo.
Tatiane: No Brasil, esse uso negativo do termo proliferou desde o começo dos anos 2010, quando forças religiosas atacaram visões e propostas legislativas favoráveis aos direitos LGBTQIA+. Mas o termo ganhou mais destaque nos últimos anos.
Janaína Tavares: Ser cristã facilitou na busca pelos caminhos desse termo ambíguo, pois outros contatos com teólogos, sociólogos, cristãos, que me ajudaram com pistas. E o que a gente entende sobre o termo é que a palavra cristofobia ela é usada para descrever o medo ou aversão ao cristianismo. Ela é frequentemente usada por líderes evangélicos conservadores para descrever o que eles acreditam ser uma perseguição ao cristianismo no Brasil. O termo cristofobia se popularizou a partir de 2010, quando o líderes evangélicos como o Silas Malafaia e o Marcos Feliciano começaram a usar nos seus discursos e entrevistas, enfim, e também com jornalista Reinaldo Azevedo escrevendo artigos, alegando que o cristianismo é a religião mais perseguida do mundo. O campo evangélico conservador passa a usar o termo como uma forma de reação de debate sobre o projeto de lei que propunha a criminalização da homofobia. Essa reação foi ainda maior quando também o Supremo Tribunal Federal reconhece a união civil homoafetiva em 2011.
Tatiane: A expressão passou a ser disseminada também por políticos evangélicos, ou seja, que atuam tanto na igreja como nas esferas políticas municipais, estaduais e até mesmo federal. O Marco Feliciano, mencionado pela Janaína é um desses casos. Além de pastor, ele é deputado federal pelo Partido Liberal, o PL, de São Paulo. No plano municipal, identificamos o vereador Carlão, do PL de João Pessoa, que em plenário expressou sua preocupação com o avanço da perseguição a pessoas que professam a fé cristã. Usou como exemplo países como Nigéria e Coreia do Norte, também mencionados pela Janaína, onde, segundo ele, extremistas destroem altares, templos e pessoas são atacadas, mortas ou feridas. Citou também a Nicarágua, que proibiu uma procissão católica, aproveitando para fazer uma associação entre o ditador nicaraguense Daniel Ortega e o presidente Lula. Segundo Carlão, essa perseguição pouco a pouco estaria adentrando o nosso país.
Daniel: Mas podemos dizer que o ápice desse uso distorcido do termo Cristofobia foi o discurso do então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020. Nele, Bolsonaro apelou “pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. Essa alusão visava certamente mobilizar seus apoiadores fiéis que, como se sabe, são filiados às igrejas pentecostais e correntes católicas ultra conservadoras.
Ronaldo Almeida: Eu fiz um esforço quando vocês me convidaram. Um esforço de memória, para saber desde quando eu ouço essa palavra. Porque homofobia é clássica, do conhecimento de todos, mesmo não cristãos, né? De que a história do cristianismo passa pela perseguição seu nascimento seu mito de origem desde de Cristo até a chamada Igreja Primitiva.
Tatiane: Esse quem fala é o antropólogo Ronaldo de Almeida, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que realiza pesquisas sobre religião, em especial sobre os cristãos neopentecostais.
Ronaldo Almeida: Até a oficialização do cristianismo com a igreja do império já no século IV, né? Mas foi um período dos primeiros séculos de perseguição como qualquer religião minoritária, então isso não é uma particularidade também do cristianismo, a perseguição é religiosa, né? Então a perseguição aos cristãos teve na sua história no seu nascimento e deve ter a contemporaneidade. A questão é que precisa se situar, né? Aonde que ocorre essa perseguição. No Brasil, ela é um pouco estranha, para dizer a verdade, dado que a maioria da população é cristã, né? Então que povo perseguido é esse se eles compõem a maioria da população como que ela se dá?
E aí eu comecei a pensar um pouco quando eu começo a ouvir isso, né? E aí fui lembrando no final dos 80 dos anos 80, tiveram dois filmes. Um é a Última Tentação de Cristo e outro Je vous salue Marie, que era do Godard e o outro do Scorsese. Je Vous Salue Marie foi censurado pelo governo Sarney por forte pressão da Igreja Católica os dois movimentos foram muito dos católicos, né contra esses dois filmes e eu não lembro, eu procurei falei a palavra cristofobia não tava posta, ninguém tratou isso necessariamente como a perseguição. E a minha percepção é que o termo é mais recente e ele tem que ser compreendido em relação a outros termos, né? O primeiro é em relação à homofobia, eu acho que antes de mais nada é um termo que vem competir com esse.
Uma coisa que o sociólogo da religião já falecido, professor da USP, Flávio Pierucci falava sobre essa coisa do evangélico se colocar na posição de perseguido, ele falava sobre a Igreja Universal que perseguia as religiões afro, mas se colocava no discurso de perseguido. Ele chama de um efeito de reversão. E a impressão que dá que cristofobia me parece que é um pouco isso, é uma reação, uma captura do termo homofobia para jogar confusão no debate, de extinção e um pouco equilibrar o jogo, então vocês perseguem vocês dizendo que nós perseguimos os homossexuais e vocês perseguem os cristãos e aí, no mínimo empata o jogo.
Tatiane: É interessante situar a análise do Ronaldo no já mencionado contexto político dos anos 2010, quando a pauta ultraconservadora ganhou vigor, o que mais tarde daria combustível ao ciclone político que elegeu Bolsonaro em 2018. Há que dizer que o discurso da Cristofobia não está dissociado das fakes news então propagadas à época. O chamado kit gay, a legalização do aborto e a emancipação feminista criaram pânicos morais e políticos para capturar a imaginação das e dos eleitores, sobretudo com a fantasmagoria da sexualização precoce das crianças. Subjacente a essas supostas ameaças estava latente o espectro da aversão aos cristãos e ao próprio Cristo.
Daniel: Vladimir de Souza, pastor da Igreja da Redenção Baixada, a mesma que Janaina frequenta, também tem elaborações sobre as dinâmicas em que fantasmas de Cristofobia se misturam com a política eleitoral. O que a gente ainda não tinha dito é que na sua igreja, as pessoas LGBTQIA + são acolhidas e são parte ativa da comunidade. O pastor Vladi, que é pedagogo e tem formação batista, aposta na criação de canais de aproximação com evangélicas e evangélicos fora dos períodos eleitorais para tentar promover esse diálogo
Vladimir de Souza: Hoje a igreja mais conservadora não é só conservadora, ela é reacionária. Você ser conservador é primar por valores que para você são inegociáveis, ou, como diria aquele ministro da era Collor: imexíveis. Faz sentido, né? Mas não é sobre isso. Nós estamos vendo, na verdade, um movimento religioso se apropriando de pautas que, para mim, inviabilizam, precarizam ou esvaziam direitos já consolidados pela promulgação da Constituição cidadã de 1988, depois de 21 anos de ditadura militar. Então o que nós temos hoje é um movimento muito diferente. É algo que eu nunca vi, eu tô com 52 anos, me lembro muito bem como foi a primeira eleição, né? Após a ditadura, na reta final nós tivemos o Collor e o Lula, claro que a igreja viveu uma certa tensão.
Que era muito próprio, até porque a imagem do Lula estava associada ao comunismo, aquela história toda, mas não houve uma ruptura como aconteceu em 2018. O tecido religioso evangélico brasileiro, ele não é o mesmo desde 2018. Eu poderia dizer assim, eu gosto de fazer uma linha do tempo, acho que de 2013 para cá que esse processo começou. Acho que por conta das Jornadas de Junho, que colocou muita gente na rua, inclusive os evangélicos, com várias pautas, um tanto quanto confusas e difusas, mas que, de certa forma, também estava gestando essa extrema direita, em especial essa galera aí do MBL, que agora tem até um partido político, né? Então, para mim começa em 2013, depois 2013 foi apenas um abalo sísmico, né? 2016 teve um abalo mais intenso, porque tem a ver com o impeachment da Dilma, e em 2018 na verdade foi um terremoto.
Tatiane: A trajetória descrita pelo pastor Vladi mostra como o uso político da religião, somado ao recurso das fake news produziu um fantasma: o Estado estaria se opondo aos princípios cristãos. Entre outros efeitos, esse fantasma aciona ataques a políticas públicas antidiscriminatórias, inclusive no âmbito do respeito e proteção da liberdade religiosa. Embora mais de 80% da população brasileira seja filiada a religiões cristãs, existem no Brasil muitas religiões. Segundo o Censo de 2010, último dado sobre isso, 0,3%, por exemplo, estão afiliados a religiões de matriz africana e 8% declaram não ter nenhuma religião.
Daniel: E quando falamos em intolerância religiosa, as religiões de matriz africana sofrem verdadeira perseguição no país. A punição para estes atos existem desde 1997, e as penas foram aumentadas pela lei de injúria racial aprovada em 2023, a Lei 14.532. Mesmo assim, são cada vez mais comuns os ataques aos terreiros, localizados principalmente em zonas de milícias no país. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, em 2022 houveram 1.200 ataques motivados por intolerância religiosa, um aumento de 45% em relação a 2020. Um exemplo desses ataques ocorreu em 2023, no município de Piraquara, no Paraná. A Casa de Terreiro de Umbanda Tia Maria, foi apedrejada logo que se iniciaram as atividades ritualísticas. Nesse cenário e, com toda razão, as pessoas que pertencem a essa tradição espiritual, assim como as que pesquisam e lutam contra o racismo, definem essas práticas discriminatórias e violentas como racismo religioso.
Tatiane: Não podemos nos esquecer que, além dessas outras religiões, há também no Brasil correntes cristãs progressistas, que não aderem aos princípios ortodoxos dessa tradição. Elas apoiam os direitos das mulheres, da comunidade LGBT e das comunidades espirituais afro-brasileiras, que têm sido alvos de discriminação e perseguição. É o caso da Redenção Baixada, como comentam Janaina e Vladi.
Janaina Tavares: O que observamos no país é uma perseguição, entre aspas, interdenominacional, digamos assim nós da Redenção Baixada por exemplo torcemos uma igreja afirmativa e comprometida com os direitos humanos e com combate ao racismo na baixada Fluminense, que fica uma região ultra conservadora a gente já sofreu invasão no encontros online, xingamentos em postagens. Perceba também que não temos uma figura evangélica progressista que tenha tanta repercussão quanto os nomes evangélicos da direita e da extrema direita. Eu mesma, que não sou reconhecida digital e nada dessas coisas, já recebi mensagem de uma evangélica dizendo que eu não conhecia Jesus. Isso porque eu tinha compartilhado algo sobre a teologia Queer.
Daniel: O pastor Vladi também faz questão de deixar claro que sua visão sobre as pessoas queer não tem nenhuma motivação subjetiva:
Vladimir de Souza: Eu sou homem casado dentro de uma configuração tradicional, num casamento de quase 30 anos com a mesma pessoa. Eu tenho dois filhos que também até o momento me parece que são heterossexuais, então eu sou mais um aliado da luta, né? Sou mais alguém que está ali tentando construir um ecossistema possível e necessário para os nossos irmãos LGBTs. A questão é você falar nós vamos acolhê-los, outra coisa é você afirmar dar poder, dividir espaço, que é exatamente o que nós fazemos. Então nós damos um passo que eu acredito que muitos não conseguem fazer por uma série de fatores. Então, eles não só estão entre nós, eles estão em todos os lugares. Mas eles estão entre nós tendo liderança, tendo voz, tendo participação em linhas gerais, cantam, pregam, tocam, estão na escola bíblica dominical.
Daniel: Janaína relata situações nas quais se sentiu discriminada por ser evangélica, sendo que nesse caso a discriminação não vem apenas dos pastores fundamentalistas ou da direita.
Janaina Tavares: Honestamente esse discurso de perseguição das Universidades, da sociedade, contra os cristãos esse discurso cola nos seguidores por vários motivos. Podemos fazer uma reflexão muito breve aqui. Primeiro, parte da esquerda e da universidade e do campo artístico sempre olhou com maus olhos os cristãos com certa razão eu entendo. Mas isso é algo do qual não podemos negar. Eu digo isso porque eu já fui assim com os crentes quando eu não era evangélica. Segundo, para as pessoas elas não atacam com determinados tipos de informações ela só escuta uma versão da história muitas absorvem as fake news, não se importam em realmente entender o outro lado da história e outro tipo de narrativa e, enfim, existe uma acomodação também. Terceiro, tem uma presença forte e constante na vida das pessoas, através das mídias dos jornais das redes sociais os grupos de WhatsApp, as reuniões dominicais. Enfim, eu não saberia responder com precisão mas, fazendo uma avaliação digamos, empírica, acredito então que é um combo é um conjunto de coisas que fazem com que essas pessoas acreditem. Eu digo isso porque eu tenho amigos que seguem uma teologia mais tradicional, que votaram no Jair Bolsonaro, por exemplo, sabem que eu votei no outro candidato e que eu faço parte de uma igreja progressista e a gente consegue dialogar. Até hoje não consegui convencê-los a não votar com projetos fascistas, mas pelo menos a gente consegue abrir um certo diálogo, a gente consegue não se ofender. Enfim, e eu percebo que eles, de fato, nunca ouviram outro tipo de narrativa, então quando eu chego com algo, são olhos arregalados ou, enfim, então, a gente precisa ter uma certa compreensão. Existe canalhice, mas também existe falta de acesso à informação.
Tatiane: Ronaldo avalia que o uso de desinformação nas bolhas de relações acaba ajudando a deturpar uma visão sobre o que é ser cristão.
Ronaldo Almeida: Essa rede de desinformação, ela não é só produzida por cristãos de direita, né? Ela é produzida pela direita, em termos mais amplos. Então você pode ter gente Cristã religiosa, né? Ou, na verdade, a religião vira um ativo político, né? E nesse sentido, nesse nível de desinformação que a gente tá, a religião também entra. Então qualquer atitude, por exemplo de um governo Lula, um governo de esquerda, é tido como cristofobia. Qualquer tipo de regulação, é logo capturado como algo, como uma violência contra a própria religião, contra o próprio Deus, é desse jeito que é manipulado.
Uma coisa que eu venho pensando há muito tempo, o termo Cristão tem mudado de sentido no país, né? E eu sempre cito um exemplo para economizar. Durante a campanha eleitoral, acho que todo mundo deve lembrar desse evento que foi muito midiático. Um sujeito bolsonarista lá em Foz do Iguaçu matou um petista no dia do seu aniversário, né? E aí faz a matéria sobre quem que é esse cara que matou e lá no Facebook, ele se identificava Cristão conservador. E eu fiquei lá procurando para ver se achava algum versículo, alguma referência a Deus, alguma comunidade. No final, não tinha nada. O Cristão na verdade virou uma identidade política, não era uma identidade religiosa. O Cristão dele, não era conjunto de crenças, não era um pertencimento a uma comunidade religiosa, mas era um alinhamento político, né? Eu acho bem interessante a proposta aqui de perseguir o termo cristofobia e mesmo o termo Cristão hoje na atualidade, que eu acho que tá diferente de 10, 15 anos atrás. Eu acho que ele adquiriu um valor político, e divisor da sociedade, que não que não se elabora em termos propriamente religiosos, mas políticos, usando a identidade religiosa.
Daniel: E com essa fala, nosso entrevistado Ronaldo Almeida condensa o que falamos neste episódio, sobre o uso político do termo cristofobia, usando um apelo religioso e distorcendo a realidade sobre quem são os cidadãos perseguidos ou alijados de direitos no país.
Tatiane: Os termos que estamos conhecendo nesta série fazem parte do repertório da extrema direita transnacional e desempenham papeis fundamentais em suas estratégias políticas. Esses termos são poderosos, capazes de evocar emoções e produzir temores e ansiedades infundadas nas pessoas. Justamente por isso, é importante compreendê-los em profundidade para contrapor as agendas e narrativas desses grupos e resistir à realidade que eles buscam construir.
Daniel: Você já tá curiose pra conhecer os próximos termos? Acesse o Dicionário de termos ambíguos no site do podcast Oxigênio e junte-se a nós no próximo episódio de “Termos Ambíguos” enquanto continuamos a desvendar as origens dos termos que moldam nosso mundo. Agradeço por nos ouvir.
Tatiane: Este foi o segundo episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. Tivemos também a colaboração do Eyder Gomes Lopes, bolsista do Serviço de Apoio ao Estudante, da Unicamp. O roteiro foi escrito pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio e pelo Valério Freire Paiva, jornalista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e aluno do curso de Especialização em Jornalismo Científico, do Labjor, que fizeram também as entrevistas. A revisão do roteiro foi feita pela Tatiane Amaral, pela Nana Soares, da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.
Tatiane: Você pode nos seguir pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para [email protected]. O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues.
The podcast currently has 326 episodes available.
300 Listeners
163 Listeners
116 Listeners
29 Listeners
66 Listeners
201 Listeners
136 Listeners
8 Listeners
48 Listeners
28 Listeners
63 Listeners
13 Listeners
74 Listeners
11 Listeners
12 Listeners