Enterrados no Jardim

Suíte e Fúria. Uma conversa com Rui Nunes


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A degradação também se faz de um infindável repertório de ecos, repetições que parecem vincar algo de decisivo, mas que, na verdade, vão corroendo, deslocando o sentido até este se tornar demasiado vago, inexpressivo. E, nisto, damos por nós em busca de uma voz que não proceda de um olhar emprestado, ou roubado. Como escreve Rui Nunes no seu mais recente livro ("Neve, Cão e Lava"), lêem-se "tantos poemas, tantos romances, que não passam de olhares emprestados, roubados".  Não são os temas de uma escrita o que faz a diferença, não é o porquê mas o como, a que custo, se com unhas e dentes, se simplesmente porque se tem algum tempo para matar. Tanto do que hoje se publica tresanda a essa forma de decomposição, a um desejo de agradar, de estar de acordo com o que já nos cerca até ao sufoco. Mas é por meio da recusa que uma escrita impõe um audaz desafio à ordem geral.  Como assinalou António Guerreiro, a escrita de Rui Nunes faz-nos ver que não basta dizer “merda” para que um texto cheire mal, nem basta dizer “sangue” e “carne mutilada” para fazer emergir a violência: é preciso também uma sintaxe, proceder à mutilação das frases e do ideal narrativo. Fortemente implicada numa reflexão e denúncia dos elementos mais traiçoeiros da actualidade, a sua obra rejeita a superfície, e cose-se num nível em que cada um dos elementos que participam na materialização da linguagem estão sensíveis, feridos e frágeis tanto como truculentos. Tudo na escrita deste autor pratica a denúncia, mas não o faz sem conhecer de perto o mal. Esse é o grande objecto da sua investigação. E no seu percurso passa amiúde por uma "gente benigna que se distrai", à margem, ignorantes ou desinteressados, depara-se com esses escritores que "de palestra em palestra falam da fome e da guerra, bebem um uísque, expõem certezas e maliciosas dúvidas". Acentua que "esta gente carrega uma antecipação, um funeral, um obituário, uma última vez na glória de um telejornal". Insiste em recordar ao futuro as ruínas sobre as quais foi erguido, e como "qualquer história tem mil anos de sufoco, uma lei, lugares certeiros de morte". 

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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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