O confronto directo entre Israel e o Irão marca uma viragem na longa guerra na sombra entre os dois países. Segundo o investigador do IPRI-Instituto Português de Relações Internacionais e professor do ISCET-Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, José Pedro Teixeira Fernandes, Israel procura travar o programa nuclear iraniano, enquanto os dois países violam o direito internacional. O conflito reflecte rivalidades estratégicas profundas e agrava a instabilidade na região.
RFI: Como é que chegámos a este conflito militar directo entre Israel e o Irão?
José Pedro Teixeira Fernandes: É um processo que, no fundo, se tem agravado nos últimos meses ou anos. Contextualizando a conflitualidade que hoje estamos a ver importa referir o seguinte. Até há cerca de um ano, ou um ano e meio, ou até um pouco menos, o que existia era o que se chamava uma guerra na sombra. Tratava-se de confrontos não assumidos abertamente entre o Irão e Israel, ligados fundamentalmente à enorme inimizade entre os dois Estados. Esta resultava de acções e também declarações, muitas vezes bastante agressivas dos dirigentes iranianos e da reacção de Israel. Nesse contexto, houve todo um conjunto de operações, desde sabotagens a atentados. No entanto, raramente víamos ali pistas que nos permitissem afirmar abertamente a autoria. Até aí sabia-se que havia uma guerra travada na sombra, mas ambos os lados não pareciam querer subir esse patamar. Tudo se começou a alterar gradualmente a partir do ataque a Israel em 7 de Outubro, que é um ponto de viragem óbvio quando vemos o que está agora a acontecer no Médio Oriente. O Irão, com os seus aliados (desde logo o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e grupos e milícias pró-iranianas na Síria), julgou que tinha encontrado uma situação ideal para pressionar ao máximo Israel e causar o máximo dano a Israel. E, realmente, a convicção existente início do conflito, quando recuamos a finais de 2023, era largamente, a nível internacional, de que o Irão tinha sido um dos grandes ganhadores do ataque do Hamas de 7 de Outubro e que estava numa posição de força.
Os acontecimentos do ano passado vieram gradualmente a alterar essa realidade e a percepção sobre ela. Há um primeiro momento de um confronto indirecto, em Abril de 2024, na sequência de um bombardeamento feito na Síria, em Damasco, que atingiu anexos consulares iranianos. Apesar de tudo, esse primeiro bombardeamento feito directamente, que quebrou as regras anteriores porque foi assumido, foi de certa forma um prenúncio. Mas a retaliação iraniana foi pré-anunciada, o que permitiu, também, uma preparação defensiva de Israel e dos seus aliados. Houve uma acção liderada pelos Estados Unidos que ajudou à intercepção dos mísseis e drones iranianos pela primeira vez, de forma assumida, disparados sobre Israel. A partir daí a situação continuou a agravar-se. Tivemos em Outubro de 2024 novamente um confronto directo entre os dois Estados, muito mais violento do que o primeiro. E a situação deteriorou-se ainda mais, o que nos leva até hoje. Parte disto está relacionada, certamente - e provavelmente a parte mais importante -, com a forma como Israel conseguiu largamente anular os grupos pró-iranianos na sua envolvente regional. O Hezbollah é um caso muito claro. Também a Síria, com a queda de Assad, trouxe outra transformação muito significativa. Quanto ao Hamas, provavelmente neste momento apenas tem capacidades militares residuais e não poderá montar qualquer ataque de envergadura contra Israel. Aliás, a questão em Gaza é agora fundamentalmente um drama humanitário imenso da população palestiniana, não um problema de ameaça militar a Israel. Mas, neste ambiente estratégico, onde o Irão tem um programa nuclear avançado que não só para fins pacíficos - isso parece-me claro, apesar do Irão fazer um jogo ambíguo à volta do respeito pelo direito internacional -, a questão palestiniana fica, mais um vez, na sombra. Isto levou Netanyahu a ver aqui uma oportunidade estratégica para avançar com a possibilidade de eliminar ou tentar eliminar o programa nuclear do Irão. O que nos leva até hoje e esta situação crítica que estamos a ver. É evidente que esta actuação de Israel é censurável do ponto de vista do direito internacional. Mas também é censurável a posição do Irão de, no fundo, estar na teoria a respeitar a legalidade internacional mas na prática a violá-la, infringindo, desde logo, as regras do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TPI), embora de uma forma mais dissimulada. Indubitavelmente que um programa como o do Irão, com instalações nucleares subterrâneas defendidas militarmente - e outras mantidas secretas -, não é apenas para fins pacíficos. Assim, temos todo este cenário extraordinariamente crítico no Médio Oriente.
Esta é uma guerra na sombra que existe há décadas, não começou na semana passada. O 7 de Outubro foi um ponto de viragem e talvez um pretexto para uma estratégia que Israel já tinha pensada, pergunto-lhe. Por que razão é que Israel vê o Irão como uma ameaça existencial? Qual é o projecto político de Benjamin Netanyahu? Porquê uma vitória não se limita ao campo de batalha?
Claro, é um conflito - agora guerra aberta - com um longo e complexo historial. Penso temos aqui uma situação estratégica, como referia, estranha e curiosa ao mesmo tempo. Até 7 de Outubro e nos desenvolvimentos pelo menos imediatos, e utilizando aqui uma analogia com o xadrez, era o Irão que tinha uma estratégia de avanços no Médio Oriente e era o Irão que provavelmente imaginava poder dar, de alguma forma, uma espécie de xeque-mate a Israel, ou, pelo menos, colocar Israel numa situação particularmente aflitiva em termos de segurança e numa debilidade óbvia. Para isso, o Irão apostou numa estratégia, montada ao longo de vários anos, décadas até, de criar guardas avançadas no Líbano, no Iémen, em Gaza, na Síria e no Iraque.
O que acontece é que a resposta de Israel, que também já estaria preparada, sobretudo no caso do Hezbollah, como vimos no ano passado, alterou a relação de forças existente. O que aconteceu com o Hezbollah e a forma como Israel conseguiu realmente eliminar militarmente as lideranças políticas do Hezbollah, certamente denota um plano que já existia há anos. Aí percebemos que Israel tinha feito uma preparação estratégica para esse cenário. O que parece também foi que as próprias contingências da guerra e os seus desenvolvimentos, tornaram, sobretudo o Primeiro-Ministro israelita Benjamin Netanyahu - um político que era relativamente prudente na prática, apesar de fazer sempre declarações muito contundentes e também agressivas - a assumir cada vez mais riscos. E isto também se liga, certamente, com a situação interna de Israel, porque a guerra também é uma forma de o governo de Netanyahu, que assenta numa coligação com partidos radicais de direita, se manter no poder. Há uma situação permanente de emergência. O próprio Netanyahu tem casos pendentes internamente e também no Tribunal Penal Internacional, que ajudam eventualmente a tomar este tipo de medidas mais arriscadas.
Quanto à inimizade dos dois Estados tem um ponto de nascimento tão antigo quanto a actual República Islâmica do Irão. Até 1979, quando o Xá estava no poder, ambos eram aliados dos Estados Unidos. As relações eram normais e até de alguma proximidade estratégica. A partir daí, a revolução islâmica no Irão, que levou o Ayatollah Khomeini ao poder, assumiu uma dimensão religiosa e ideológica, passando o Irão a ver quer os Estados Unidos, quer Israel, como os seus maiores inimigos. O Irão, tal como o conhecemos nesta versão da República Islâmica, sempre olhou para Israel como o inimigo maior no Médio Oriente. Na terminologia da sua propaganda político-religiosa, é o pequeno Satã, sendo os Estados Unidos o grande Satã. Portanto, trata-se de uma hostilidade enraizada, de tonalidades religioso-políticas, que nunca se dissipou. Pelo contrário, teve até momentos de grande acentuação, como emergir da ambição nuclear do Irão, em especial durante a presidência de Ahmadinejad. Quanto a tentar obter armamento nuclear, até se pode compreender que, do ponto de vista de um Estado como o Irão, que é xiita e mal aceite no Médio Oriente, maioritariamente árabe e sunita, se possa sentir ameaçado na sua segurança. Há também outros Estados - estou a pensar na Índia e no Paquistão -, que seguiram o caminho nuclear à margem do TPI. Israel é um outro caso, tudo indica, de um Estado com armas nucleares, precisamente por se sentir num ambiente hostil e rodeado de inimigos. Mas o facto do Irão construir o programa nuclear sempre com ameaças dirigidas a Israel, as quais sobretudo durante a presidência Ahmadinejad (2005-2013), eram muito explícitas agressivas, toda essa retórica constante anti-Israel, alimentou uma ideia, correcta ou incorrecta - estamos no domínio de percepções sobre intenções, mas num ambiente de desconfiança máxima - de que um Irão nuclear seria uma ameaça existencial e de que Israel se arriscaria ao desaparecimento com um Irão com armas nucleares. Tudo isso leva-nos também ao ponto onde estamos hoje.
Segundo alguns analistas, Israel leva a cabo uma limpeza étnica em Gaza, acelera a colonização na Cisjordânia, bombardeia o Líbano e a Síria com total impunidade, e quer redesenhar as fronteiras da região. Estamos perante uma mudança de era geopolítica no Médio Oriente. E pergunto-lhe: há risco de uma guerra regional ou as potências regionais e internacionais ainda procuram evitar uma conflagração total?
O risco existe, e agora acentuou-se, mas apesar de tudo até agora tem sido gerido. Mas em relação à questão que me coloca, acho nós temos de distinguir as diversas situações onde Israel está envolvido. Há casos de conflitos mais convencionais, a intervenção militar de Israel na Síria ou no Líbano, apesar de o Hezbollah não ser propriamente o Estado libanês e já ser um produto da anomalia do Líbano - um Estado que, na realidade, teoricamente tem um governo e um exército, mas, na prática, quem detinha o maior poder era o Hezbollah. Quanto à Síria, estava em guerra civil, mas Assad parecia ter reconquistado o controlo do poder no país, embora se soubesse, também que continuava uma luta interna de facções e não controlava todo o território. No final de 2024, acabou por ocorrer a queda Assad, muito pelo enfraquecimento do Hezbollah (e do Irão) e também pela diminuição da presença da Rússia no país devido à guerra na Ucrânia - aqui vê-se a interligação dos assuntos.
Outra questão é Gaza. Obviamente que Gaza é um problema maior, envolvendo o crónico conflito de Israel com os palestinianos, tendo ainda conexões com os conflitos anteriormente referidos. Gaza mistura razões objectivas de necessidades de segurança israelitas - como o ataque do Hamas de 7 de Outubro mostrou - com ambições territoriais, nada compreensíveis ou aceitáveis. Ou seja, aí fica claramente a ideia de que Israel acabou por ir longe demais, em termos de uma operação que já nem se percebe muito bem qual é o objectivo e valor militar, e que está a provoca uma imensa catástrofe humanitária e sofrimento dos palestinianos. É verdade, como referido, que todas estas situações têm ligação entre si, não são peças soltas ou isoladas. Mas, ao mesmo tempo, para uma adequada análise, não podemos, eu diria, “meter tudo no mesmo saco”, como se estivéssemos no mesmo plano de confrontação militar.
Agora, tudo isto levou Israel e em particular Netanyahu, o governo de Netanyahu, a ver aqui uma oportunidade de reconfigurar as relações de força no Médio Oriente a seu favor. Isso parece-me claro. Libertou-se da ameaça do Hezbollah, pelo menos temporariamente, no Líbano. Quanto à Síria, está a tentar recuperar da guerra civil e tem outras preocupações maiores que não são o Estado de Israel. Além disso, Israel também eliminou grande parte das capacidades militares do exército sírio. O Hamas em Gaza está numa posição também militarmente muito fraca. Os Houthis no Iémen vão mantendo alguma capacidade de causar alguns danos e perturbação, mas também não têm o poder de infligir danos militares de envergadura a Israel. Tudo isto, conjugado com a presença de um Presidente nos Estados Unidos que é um apoiante forte do Estado de Israel, como é Donald Trump, embora se perceba, também, que não há propriamente um encaixe perfeito nas linhas de actuação de ambos no Médio Oriente, cada um tem a sua agenda própria. Mas isto levou Netanyahu, conjugando também as circunstâncias internas que referi, a assumir riscos muito mais elevados e a convencer-se de que pode reconfigurar as relações de poder no Médio Oriente à sua maneira.
Esta escalada de conflito vai enfraquecer ainda mais o Hamas? O Hezbollah está mais enfraquecido. Este pode ser o golpe de misericórdia no Hamas?
Pode, mas, sobretudo, mais do que enfraquecer o Hamas, eu diria que, mais uma vez, os palestinianos ficam completamente perdidos nesta conflitualidade do Médio Oriente. Um dos efeitos laterais desta guerra aberta entre o Irão e Israel foi secundarizar o problema de Gaza, bem com o as conversações que existiam ao nível internacional para levar à criação de um Estado palestiniano. Portanto, existindo um conflito militar aberto entre Israel e o Irão, ainda por cima envolvendo um programa nuclear, o problema de Gaza passa para segundo plano. Não é a primeira prioridade política da diplomacia no Médio Oriente.
O Hamas também é um perdedor, mas tudo dependerá do resultado final deste conflito entre Israel e o Irão, que ainda é incerto. Quanto Irão - apesar dos elevados danos que sofreu provocados pelos ataques israelitas -, devo aqui também dizer, está a mostrar, provavelmente, capacidades de retaliação que eventualmente terão também surpreendido os israelitas. Embora, indiscutivelmente, o audacioso ataque israelita da passada semana tenha surpreendido, e de que maneira, o Irão, pelo menos no dia inicial, pelos efeitos devastadores que teve. Mas o resultado desta guerra também é ainda incerto, não é? A ser assim, diria que, mais do que o Hamas, os palestinianos serão, mais uma vez, perdedores maiores nisto.