O artista plástico guineense, Nú Barreto, radicado em França, realiza pela primeira vez uma exposição individual em Cabo Verde. Intitulada “Des-Obra” a exposição, que se encontra patente na Galeria Bela Duarte, no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD), na ilha de São Vicente celebra o legado de Amílcar Cabral, reflecte sobre o seu pensamento e acção revolucionária disse à RFI, na cidade do Mindelo, Nú Barreto.
“É uma exposição que é virada para questionar o que nós fizemos com o legado de Cabral. É como se fosse Cabral a interrogar-nos sobre o legado que ele deixou. Talvez Cabral tivesse muita dificuldade, pela sua humildade, em questionar as pessoas sobre o seu legado. Eu achei que deveria pegar no legado de Cabral e questionar a sociedade, o que nós fizemos com o legado de Cabral. Há partes da obra de Amílcar Cabral, ou por boa vontade ou má vontade, em que houve más explicações. E achei que há uma desconstrução da obra de Cabral. Daí é que eu fui, pura e simplesmente, em vez da obra, pela ‘Des-Obra’ de desconstrução. De algo que teremos que lutar para lá chegar, para já temos que perceber quem é Cabral, o que é Cabral em si, para lá chegar. Então, foi por causa desta corrida atrás de desconstrução da obra de Cabral que eu dei o título da minha exposição, "Des-Obra". É verdade que no meu percurso nunca tinha abordado nada sobre o Cabral. Não porque não houve convites, houve convites. Nunca quis relatar Cabral só por um simples desenho, uma simples pintura de retrato de Cabral, porque achei que já são coisas que foram feitas. E desta feita eu acho que não tinha nada a acrescentar nesse sentido. E eu teria que abordar Cabral num outro sentido, numa outra forma. Forma que é muito mais especial, muito mais virada à minha própria linha. Que eu achava que talvez assim, interrogável, seria muito mais interessante. Pelo menos na minha parte”, disse Nú Barreto.
O artista guineense afirmou que as suas exposições não precisam de códigos, “entrar nessa exposição ‘Des-Obra’ não exige nenhuma preparação, foi trabalhada para facilitar muito a compreensão. E é muito fácil de perceber. A as pessoas vão compreender dando volta à exposição. E é muitíssimo fácil porque abordei questões que são conhecidas. Questão que o próprio povo, é comum entre os dois povos. Por exemplo quando se diz aqui em Cabo Verde, Cabral Ka Morri (Cabral não Morreu), sabemos do que se trata. Na Guiné, quando dizemos também Cabral Ka Morra, sabemos do que é que falamos. Então, eu fui buscar temáticas. São assim, à volta da sociedade, aquilo que é conhecido. Mas também fui além disso, jogando com esse aspecto que o Cabral defendeu da cor preta e branca. Vê-se ao longo da exposição. Porque trabalhei à volta de duas fotografias só, essa exposição toda. Então, é muito fácil as pessoas encontrarem algo para discutirem. E encontrarem facilmente um instante de repouso, um instante de questionamento. Que eu acho que é muito mais importante, a meu ver, dentro dessa exposição”.
Nú Barreto disse que Amílcar Cabral nunca extraiu a cultura na sua própria ideologia. “A cultura sempre teve um lugar bastante importante. E que é mesmo de destaque que ele fez questão. Porque soube perfeitamente que era este o caminho para começar a construir uma nova sociedade com uma outra mentalidade. E aquilo partia-se de cedo, muito cedo. E pronto. Então, sendo assim, Cabral é uma pessoa que navegou com o poético. Dentro desse percurso da minha exposição, há pontos que criam essa lembrança. Só o facto de pegar nesta ideia de Cabral de que a luta é um acto cultural. Entrar dentro de uma exposição no qual abordamos o legado. Eu acho que, de uma ponta à outra, o percurso poético encontra-se também dentro desta leitura. Ou, pelo menos, desta escrita”.
De acordo com Nú Barreto, a exposição “Des-Obra” que decorre no âmbito do primeiro centenário de Amílcar Cabral seria também para acontecer na Guiné-Bissau, mas devido a situação política vivida naquele país optou-se somente por Cabo Verde.
“Lamento imenso, o nosso percurso não permitiu que esse sonho fosse possível. Fiz tudo o que foi possível para mim.Mas as condições actuais não me permitem apresentar esse trabalho na Guiné. Só sabe o destino, como é que aquele país precisa de voltar a questionar o legado de Cabral para se integrar dentro daquilo. Não havendo capacidades, não há condições para acolher esse projecto na Guiné. Por isso, simplesmente, acabei por decidir que a exposição ficasse aqui em São Vicente. Realmente, estamos numa situação bastante complicada a nível político. E isso, efectivamente, não permitiu que eu me arriscasse a apresentar essa exposição na minha terra. Lamento bastante, mas pronto, vou fazer com as pessoas que estão à altura de perceber. Ou, pelo menos, faço a proposta para que as pessoas que estão interessadas em perceber aquilo que o Cabral ofereceu à sua vida, porque ele ofereceu à sua vida. Foi o sonho dele, conseguiu. E pronto, porque não, também nós tentamos lutar para conseguir os nossos sonhos através de uma ideologia, de uma coisa que já foi feita. O homem fez, agora era só nós seguirmos aquilo”, afirmou o artista plástico guineense.
Nú Barreto, que regressa agora a São Vicente, 26 anos depois de ter participado de uma bienal de jovens artistas disse que a “Des-Obra” está ligada a uma segunda exposição colectiva sobre a ideologia de Amílcar Cabral a ser organizada pela arquitecta Paula Nascimento e da historiadora Ângela Coutinho, que é a curadora científica da exposição “Des-Obra”.
“O projecto tem duas partes, no qual, quando o Artur Marçal, que é o diretor do CNAD, falou-me sobre a ideia de conciliação desses dois projectos que faziam inteiramente sentido juntarmos para podermos fazer um trabalho sobre o Cabral, porque os dois projectos falam sobre o Cabral. Aceitei logo porque, pronto, fazia sentido integrar o meu projecto no projecto da Ángela Coutinho e da Paula Nascimento. Como dizia também que elas já tinham começado esse projecto há muitos anos. Pronto, assim é que nasceu essa ideia de exposição que começava no dia 12 de setembro, que era a data de aniversário do Cabral, com uma exposição individual minha e depois seguia uma outra exposição colectiva com artistas convidados de Angola, de Cabo Verde, de Guiné, de Moçambique, e que esse projecto teria uma itinerância que nós estamos a trabalhar actualmente, arduamente, que é para ver se alargamos mais a itinerância desse projecto a palcos que merecem ver realmente as abordagens dos artistas sobre a ideologia de Cabral, sobre o pensamento do homem”, disse Nú Barreto.
Em entrevista à RFI, a historiadora Ângela Coutinho falou sobre a exposição colectiva sobre a ideologia de Amílcar Cabral que vai acontecer numa das galerias do CNAD e segue depois outros espaços a nível mundial, dizendo que esta junção nasceu de um encontro feliz com o Nú Barreto.
“Houve um encontro feliz entre todas as nossas ideias e projectos. Claramente no Barreto, penso que da nossa região aqui da África Ocidental, talvez entre os lusófonos africanos, é o artista plástico mais reconhecido internacionalmente, daí o facto de ele ter-se dedicado a um projeto de exposição individual para assinalar, comemorar o centenário de Amílcar Cabral, foi para nós uma grande alegria e mais valia saber que ele tinha feito esse investimento, e desde logo, como ele explicou, conversámos, acertámos, houve um grande entendimento com as direções do CNAD, anterior e esta, relativamente à filosofia da nossa abordagem, a nossa preocupação, como diz o Nú, é interpelar a sociedade. A interrogação que eu e a Paula Nascimento nós fizemos foi, porque é que ele importa? Para que é que interessa, afinal, Cabral? Hoje, se pensarmos nos jovens cabo-verdianos, por exemplo, eu assumo-me como cabo-verdiana, pedi a nacionalidade, o meu pai é de São Vicente. Vim para cá há 20 anos, estive a trabalhar no ensino superior, na área de História, e pude observar que, de facto, o Estado de Cabo Verde não tem agarrado com todas as mãos a História de Cabo Verde, não é só a de Cabral, ou da luta de libertação, a História. E, por outro lado, há uma grande procura, uma grande reivindicação, por parte dos jovens, em relação a Cabral, porque fala-se de Cabral todos os anos a 20 de Janeiro, e se virmos a televisão, as pessoas dizem sempre o mesmo. Mas, afinal, o que é que ele fez? Falta enquadrar, contextualizar. E, então, este projeto com a Paula Nascimento, que é, neste momento, a curadora de Arte, eu acho, também da África Lusófona, ela é angolana, com a maior projeção.Está encarregue de Bienais de Arte pelo mundo fora, tem prémios nos Estados Unidos, organiza exposições na África do Sul, em França, é responsável pela parte africana da Feira Internacional de Arte Contemporânea ARCOlisboa. É conselheira da Fundação Gulbenkian, quer dizer. Então, eu fui ter com esta pessoa e fui pedir que fizéssemos um projecto ambicioso, que estivesse à altura de Cabral, do prestígio de Cabral, e que pudesse, de facto, sair de Cabo Verde, e com essa ajuda dela, dos contactos que ela tem e do nível de conhecimentos, que pudesse sair daqui, produzindo aqui, para os melhores museus do mundo. Este é o nosso desafio. O facto de termos conseguido, digamos assim, cruzar, combinar o nosso trabalho com o do Nú Barreto, só veio a engrandecer este trabalho. Então, temos uma segunda fase, que será uma exposição colectiva, com artistas convidados, que reflectem estes temas. Em Cabo Verde será César Schofield, Ângelo Lopes, Sónia Vaz Borges, que é da diáspora, temos também artistas de Portugal, Filipa César, Diogo Bento, temos de Angola, Mónica de Miranda, e mais outros artistas da Guiné. Esta será a segunda fase", disse a curadora científica e historiadora, Ângela Coutinho que avançou que a equipa que inclui o artista, Nú Barreto, está a negociar com galerias de vários países que podem receber a exposição colectiva sobre Amílcar Cabral de artistas de alguns países da CPLP.
Por ora encontra-se patente ao público na Galeria Bela Duarte, no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design, no Mindelo, na ilha de São Vicente a exposição “Des-Obra” de Nú Barreto, uma atividade que marca também as comemorações do primeiro centenário de Amílcar Cabral.