O órgão digital americano 'Politico' publicou nesta quinta-feira um extenso artigo intitulado "Todos devem ser decapitados" em que o seu autor, o jornalista Alex Perry, evoca os abusos alegadamente cometidos entre Abril e Julho de 2021 em Cabo Delgado por militares moçambicanos que garantiam a segurança da plataforma da gigante petrolífera francesa Total em Afungi.
De acordo com o que é relatado neste artigo, os referidos militares prenderam um grupo de 180 a 250 habitantes locais sob a acusação de participarem na insurreição ocorrida em finais de Março de 2021 na vila de Palma, nas imediações das instalações da Total. Durante três meses, refere Alex Perry, essas pessoas estiveram amontoadas dentro de contentores à entrada da plataforma da petrolífera, foram espancadas, torturadas, e algumas delas executadas. Só terão sobrevivido 26 pessoas.
A Total que, entretanto, suspendeu o seu projecto orçado em 50 mil milhões de Dólares para a exploração de gás natural em Cabo Delgado e que ainda não retomou as suas actividades devido à insegurança, refere que não tinha "conhecimento dos alegados acontecimentos descritos".
Na sequência de uma auditoria efectuada nomeadamente pelo diplomata francês Jean-Christophe Rufin, o jornalista Alex Perry afirma que a petrolífera optou por deixar de pagar directamente ao exército o seu contributo para a segurança do local, passando a pagar ao governo, no intuito de cortar qualquer elo directo com o conflito em curso em Cabo Delgado.
Aqui em França, as alegações de violações dos Direitos Humanos por parte de elementos das forças armadas moçambicanas e a eventual responsabilidade da Total nesta situação têm merecido a atenção de uma comissão parlamentar de inquérito, alguns eleitos e ONGs reclamando uma investigação por parte da justiça e também que a Total saia de Cabo Delgado.
Foi sobre o conteúdo deste inquérito que conversamos com João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural, que conhece profundamente a situação de Cabo Delgado e não se mostra surpreendido com as revelações desta investigação.
RFI: Já tinha conhecimento das situações que são relatadas no artigo de Alex Perry?
João Feijó: Não é a primeira vez que há relatórios internacionais a denunciar alegadas violações de Direitos Humanos por parte das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional já por várias vezes o tinham feito em Macomia, em Quissanga, inclusivamente realizadas até pelo grupo de mercenários 'Advisory Group'. Vários textos académicos publicados, por exemplo, pela Unirovuma ou pelo Observatório do Meio Rural, vêm denunciando situações de excesso de zelo por parte dos militares moçambicanos. A minha experiência no terreno, a falar com as populações, leva a concluir que as pessoas têm muito medo da tropa moçambicana, sobretudo a população da costa muçulmana. Não tanto a população maconde cristã do interior, mas sobretudo a população islâmica, grupos etnolinguísticos predominantemente muçulmanos. Então, a tropa moçambicana não fala as línguas locais, não tem uma formação e um entendimento socioantropológico da população local, não entende a origem do conflito. A formação que tem é que basicamente sente que o inimigo não tem rosto e 'não podemos confiar em ninguém'. Logo, desconfiam profundamente da população. E a verdade é que os guerrilheiros dos Al-Shabab, como a população lhe chama, têm apoio de vários sectores da população e, na verdade, são filhos da terra que dão informações aos soldados, que infiltram armas, que recrutam, que se voluntariaram ou que são capturados, que fazem negócios de logística. Portanto, colaboram com os Al-Shabab. Então, como numa guerra de guerrilha, ninguém tem escrito na testa se é ou não Al-Shabab, os militares, numa situação de desespero, de fadiga, que não falam as línguas locais, que assistiram à morte de seus camaradas assassinados, entram em clara situação de stress ou de burn-out e cometem excessos. Houve vários vídeos que foram divulgados nas redes sociais que mostram, por exemplo, um vídeo, se calhar o mais sensacionalista, foi o vídeo da execução de uma mulher por parte de um grupo de militares que estavam com a farda do exército moçambicano e que falavam português e que no final, depois de terem baleado pelas costas, orgulharam-se de terem morto um Al-Shabab. Na verdade, mataram uma mulher nua, a sangue frio pelas costas, que não estava armada. Portanto, este vídeo é apenas um exemplo. Houve outros vídeos que circularam de militares a degolar outras pessoas. Houve um período que foi aquele período de 2020-2021, em que foram cometidos muitos excessos por parte de uma tropa que não tinha o controlo da situação, que não tinha preparação militar, que não tinha logística, que não tinha equipamentos, não tinha uma rede de inteligência, um apoio aéreo na verdade, a tropa moçambicana também é vítima desta situação. São miúdos que são enviados para a frente de batalha sem preparação para um exército que não está organizado, com problemas, se calhar também de liderança e com problemas logísticos e depois descarregam na população. Esta ideia é largamente sabida. Não é uma novidade para ninguém. Aliás, a história das Forças Armadas moçambicanas, desde a guerra da Renamo chamada 'A Guerra dos 16 Anos' e a história da violência contra civis, precisamente porque em guerras de guerrilha, muitos civis estavam no sítio errado, na hora errada e pactuaram com a tropa guerrilheira que se insurgiu contra o Estado moçambicano. Então, estão tão documentadas as violações de Direitos Humanos perpetuadas pela tropa moçambicana que estes relatos não deixam as pessoas assim tão surpreendidas quanto isso.
RFI: Relativamente a este caso, acha que também é uma questão de falta de preparação, de desconfiança dos militares relativamente a populações que são descritas neste artigo como sendo inofensivas?
João Feijó: É preciso contextualizar o que aconteceu aqui. Há ali alguma imprecisão no texto do Alex Perry. A cidade de Palma não esteve ocupada pelos insurgentes durante vários meses, como ele diz. Houve o ataque de Março de 2021 e, de facto, a insurgência ocupou e controlou ali o centro da vila, a partir de onde organizou pilhagens e raptos e fez destruições e assassinatos e levavam as pessoas para cima (mais a norte) e regressavam. Ao fim de mais ou menos uma semana saíram e a tropa moçambicana ocupou a vila. Depois, em Abril, Maio e Junho, houve mais duas tentativas de ataque por parte dos Al-Shabab. Portanto, a partir de Março, não haviam ali jornalistas. Grande parte da população havia fugido ou estava aglomerada em reassentamentos, ou estavam escondidos nas matas ou nas ilhas, ou tinham fugido para o sul via Mueda, ou tinham fugido para Tanzânia e depois foram repatriados para Moçambique, via no governo. Portanto, a maioria da população estava escondida ali nas matas e era essa população que estava ali nas matas, que era a população de que a tropa moçambicana desconfiava, porque achavam que podiam ser guerrilheiros, que estavam ali a fingir que eram camponeses. Então há um esforço por parte da tropa moçambicana de fazer uma contra-ofensiva, ocupar aquelas aldeias em volta de Afungi. Então, nesse esforço, a população que estava dispersa no mato foi acantonada junto a alguns bastiões militares, com o objectivo de separar a água do peixe e contrariar a guerra e alargar o perímetro de segurança à volta de Afungi e proteger este grande projecto económico. Porque a doutrina moçambicana é entre proteger a população e proteger um grande projecto económico, geralmente opta-se por proteger o grande projecto económico. E foi o que aconteceu. Durante o ataque a Palma, as forças de segurança concentraram-se sobretudo na defesa do projecto de Afungi, do qual o Estado moçambicano é accionista. Ainda que o accionista maioritário seja a Total Energie, o Estado moçambicano também é accionista.Então, houve este esforço de aumentar o perímetro de segurança e, lá está, como não era claro quem é que é guerrilheiro, quem não é guerrilheiro, houve muita gente que foi confundida e foram presos e torturados. No meio deles provavelmente alguns eram Al-Shabab, outros não. Mas agora, o que eu acho que também aqui é importante reter é que a tropa moçambicana não domina as línguas locais, não conhece as características socioantropológicas daquela população. São indivíduos que são pescadores, são indivíduos que são comerciantes e que geralmente têm sempre dinheiro no bolso. Porquê? Porque vão à pesca, têm peixe e vendem. Então, nestas rusgas que existiam, quando apanhassem alguém que tinha uma quantia mais avultada no bolso, 5 a 10.000 Meticais -estamos a falar que já em 200 Dólares- era logo motivo para desconfiar que ele seria Al-Shabab, porque os Al-Shabab geralmente tinham dinheiro no bolso. Como grande parte destes militares, muitos não eram da região, não eram pescadores, não eram muçulmanos, não eram comerciantes, portanto, não entendiam estas características da população. Desconfiavam muitas vezes de pessoas das quais não tinham motivos para desconfiar, se tivessem tido uma ou outra preparação para as interrogar.
RFI: A questão que está colocada neste artigo é até que ponto é que a Total sabia ou não desta situação e era ou não responsável disso?
João Feijó: Eu já tinha ouvido essas histórias por parte das populações. Aquilo que o Alex Perry relata neste texto, já me tinha sido confidenciado a mim por parte de aldeões daquela zona. Aquelas populações que viviam ali, vivenciaram este tipo de episódios ou têm familiares que foram vítimas destes episódios. Numa das aldeias, chegaram a falar dos 70 jovens que desapareceram das mãos das Forças de Defesa e Segurança e quando eles foram perguntar aos militares o paradeiro dos respectivos familiares, a resposta que tiveram foi 'os vossos familiares são Al-Shabab'. A Vila de Monjane foi muitas vezes atacada pelos Al-Shabab e desconfiava-se que aquela vila estava altamente infiltrada com indivíduos pertencentes a este grupo rebelde. Mas da parte dos aldeões também ouvi a versão de que alguns destes ataques eram feitos pelas próprias Forças de Defesa e Segurança, uma vez que sabiam que parte daquela população tinha recebido muito dinheiro e indemnizações porque tinham saído das terras e, com esse dinheiro, haviam comprado electrodomésticos, plasmas, painéis solares. Portanto por parte da população, havia discursos para todos os lados ou que eram Al-Shabab os que atacavam, ou que eram os próprios militares que atacavam. A mim, custa-me a acreditar que a Total não tivesse tido informações deste excesso de zelo por parte dos militares, porque este excesso de zelo e estas atrocidades já vinham sendo relatadas em vários relatórios internacionais. Portanto, tinham que estar muito distraídos para não saberem o que estava a acontecer ou pelo menos para não perceberem que havia indícios de atrocidades cometidas pelas Forças de Defesa e Segurança, porque toda a população que vivia ali, sabia do que se estava a passar e todos os investigadores independentes e indivíduos de organizações não-governamentais tinham alguma informação de que as coisas não estavam bem. Aliás, eu, para ser sincero, eu noto que as pessoas que eram meus assistentes de pesquisa em Palma tinham muito medo das Forças Armadas de Moçambique. E isso ilustra qualquer coisa. Esse trauma e esse medo que têm, deve vir de alguma experiência vivida ou ouvida ou contada que as pessoas tiveram. Até porque é aos militares ruandeses que a maior parte da população, a esmagadora maioria da população, agradece e recorre sempre que tem algum problema. As Forças Armadas Moçambicanas são consideradas corruptas, oportunistas, desconfiadas e violentas. Mas entre os militares da FADM que participavam na escolta do pessoal que trabalhava em Afungi ou que em algum momento fez trabalho em Afungi -eu inclusive- chegavam muitas vezes a transmitir esta representação de que 'são estes aqui que são os confusos, são estes aqui que são traiçoeiros', referindo-se à população como indivíduos em quem não podemos confiar e que apoiam em segredo os Al-Shabab. Mas aqui é óbvio que sectores da população apoiam os Al-Shabab. Não serão a maioria, mas há indivíduos que, de facto, têm ligações e apoiam os Al-Shabab. Depois, não se conseguindo distinguir -porque as pessoas não têm escrito na testa que 'eu sou terrorista ou eu não sou terrorista' há depois um excesso de zelo. E paga o justo pelo pecador.
RFI: A linha de defesa da Total é que "não tinha conhecimento destes casos" e inclusivamente, recentemente deixou de pagar directamente ao exército moçambicano a sua contribuição para a segurança naquela zona e passou agora a pagar directamente ao próprio governo moçambicano. Julga que isto é suficiente para a Total evitar problemas?
João Feijó: Eu não sou jurista. Agora, aqui há uma coisa que é preciso ver primeiro: quem é responsável pela segurança dos moçambicanos não é uma empresa multinacional, é o Estado moçambicano. A função da empresa multinacional, neste caso de extracção de gás, é pagar impostos e depois, com esses impostos, é a função do Estado promover a segurança das pessoas. No entanto, a partir do momento em que moçambicanos se rebelam contra o Estado, a partir do momento em que esses moçambicanos criam um grupo armado não-estatal, a partir do momento em que Total é sócio do Estado moçambicano num consórcio chamado Moçambique LNG e a partir do momento em que a Total paga directamente à tropa moçambicana para proteger as suas instalações ou instalações das quais é proprietária ou accionista, directa ou indirectamente, a organização assume um lado do conflito e torna-se vulnerável perante abusos dessa tropa que depois que não consegue controlar. Unicamente, o que podem fazer é ameaçar cortar o valor no caso de haver denúncias de violação de Direitos Humanos. A única coisa que podem fazer é encaminhar as denúncias para o comando, depois fazerem investigação, mas depois são militares a investigar outros militares e não se garante, depois, que seja uma investigação justa, independente e eficaz. Até é isto que constava no relatório do Jean-Christophe Rufin, que era precisamente este conselho que a Total dever-se-ia proteger e não deveria pagar directamente aos militares, porque depois ficava vulnerável a qualquer acto que eles pudessem realizar.
RFI: Face a esta situação, qual é o papel que assume o Estado moçambicano? O que é que eventualmente deveria fazer? A seu ver, porque é que não houve, por exemplo, algum tipo de reforma no seio das Forças Armadas para evitar essas derrapagens?
João Feijó: Mais importante que isso, no curto prazo, o Estado moçambicano deveria ter realizado um luto nacional, deveria ter realizado uma cerimónia ali junto da população e, ainda que simbolicamente, devia ter reconhecido a incapacidade que teve de proteger a população. Deveria ter tido até a coragem de pedir desculpa às vítimas. Devia ter feito uma investigação sobre o que realmente aconteceu e depois reparar as pessoas pelos danos causados. Isto seria fazer cumprir a Constituição. Mas este tipo de atitude é ficção científica. Não entra na cultura política moçambicana o Estado pedir desculpa à população por ter falhado com o seu dever de proteger a população. Portanto, isto é algo que que é praticamente impossível de acontecer, porque se houvesse esta atitude política de pedir desculpa à população, isto poderia significar uma desmoralização ainda maior das Forças de Defesa e Segurança, porque elas são vítimas também desta guerra. Eles recebem salários claramente insuficientes para garantirem a sua subsistência, têm problemas de logística, não têm qualquer formação para enfrentar uma guerra destas, não têm apoios aéreos, apoios médicos e muitas vezes, quando morrem em combate, a família nem é informada ou informada muito tempo depois, ou nem recebe o corpo. Portanto, há tantas fragilidades institucionais que se os militares fossem responsabilizados por estes abusos que realizaram, o nível de desmotivação e desmoralização seria muito maior, ou até de insubordinação depois em relação às chefias. Portanto, a solução que é adoptada pelo Governo de Moçambique é fazer um silêncio que depois, por parte da população, é entendido como um silêncio cúmplice. Portanto, 'eles não falam é porque estão de acordo e é porque sabem o que aconteceu e calam-se'. Depois, as reformas que era preciso realizar, são reformas estruturais que são muito difíceis de realizar, porque isto mexe com a reorganização das Forças Armadas, com um maior controlo efectivo dos negócios de logística que são realizados durante os períodos de guerra, que não são escrutinados pelo Tribunal Administrativo. Portanto, as forças de segurança recebem cada vez mais fatia do Orçamento de Estado, mas não há um escrutínio, nem tão-pouco numa comissão específica da Assembleia da República para estes assuntos de segurança. Então a guerra torna-se funcional e o estado das coisas torna-se funcional. E depois o problema da fragilidade das instituições não é apenas das Forças Armadas de Moçambique. É transversal a todos os sectores da sociedade moçambicana. Então, é um problema estrutural. Por alguma razão, foi preciso pedir o apoio de tropas ruandesas e do SAMIM para estabilizar novamente aquela região, porque a tropa moçambicana tem problemas estruturais profundos que vão demorar vários anos a resolver. Pois agravam-se as tensões internas que existem dentro do governo e dentro do partido, de competições por negócios de segurança, como ficou patente na sequência das 'dívidas ocultas' e da passagem da administração Guebuza para a Administração Nyusi e como é que foi, depois, gerido aquele processo de defesa da costa, daqueles barcos e daquele equipamento todo que foi adquirido, que depois não foi utilizado com o argumento de que esse equipamento não servia, mas na verdade pode estar associado a negócios e comissões relacionadas com a aquisição de equipamento militar.
RFI: Esta semana, o Presidente da República disse que o seu executivo tem andado a trabalhar no sentido de a Total retomar às suas actividades. A própria Total, há uns tempos atrás, também disse que previa regressar a Cabo Delgado e, eventualmente, começar daqui a dois ou três anos a efectivamente explorar o gás. O que é que de facto foi feito pelo executivo moçambicano para a Total regressar a Cabo Delgado?
João Feijó: Nunca foram apresentados claramente por parte da Total quais eram os indicadores que deveriam estar satisfeitos para que a Total regressasse. No entanto, esteve mais ou menos implícito nas declarações que haveria condições para tal regressar, quando a população regressasse primeiro, quando houvesse segurança e quando as funções do Estado também regressassem, reabrisse as escolas, os centros de saúde e por aí fora. A verdade é que num raio de 50 quilómetros de Afungi, foi garantido a segurança por parte das tropas ruandesas, juntamente com a tropa moçambicana. A tropa moçambicana aguentou aquele período do primeiro semestre de 2021 e nesse aspecto, há que reconhecer, à custa desta brutalidade toda que está relatada no relatório do Alex Perry e que funcionários da Total conheciam, porque quando estive em Afungi, vários funcionários da Total implicitamente deixavam essa ideia que tinham conhecimento de algum excesso. Então a questão da segurança está garantida. Em segundo lugar, a população regressou e as funções do Estado regressaram, sobretudo ao nível da educação e da saúde, muito mais precários do que eram antes da guerra, não tanto ao nível da justiça. Portanto, ao nível da justiça, não há um tribunal em Palma a funcionar, não há um juíz a residir em Palma, não há um procurador. A própria prisão foi destruída, inclusivamente em Mocímboa da Praia. Portanto, em Palma e em Mocímboa da Praia, que são no fundo, o epicentro deste grande investimento do gás, não existe uma instituição da Justiça a funcionar devidamente. Os julgamentos têm que decorrer até em Pemba ou em Mueda e nem há dinheiro para transportar as pessoas. E há pessoas que estão presas há meses a a guardar julgamento. Isto num sítio onde vai ser feito um investimento de biliões de Dólares. Há aqui aspectos ainda a melhorar. O que é que o governo fez para estabilizar aquela zona? Eu acho que quem realmente estabilizou aquela zona foi, primeiro, a tropa ruandesa, com uma acção de contraterrorismo que de facto foi eficaz porque conseguiu conquistar a confiança da população, em paralelo com a Total Energie que criou o melhor projecto de contra-insurgência ali naquela zona à volta de Afungi. Por isso é que nós chamamos aquele território do 'Totalândia'. Aquilo é administrado simbolicamente pelo Estado moçambicano, mas é um Estado profundamente descapitalizado, que nem tinha sequer condições para operar e era a Total que disponibilizava os contentores para eles poderem trabalhar, os computadores, os subsídios, inclusivamente para emissão dos próprios bilhetes de identificação e números de identificação fiscal, porque era preciso depois pagar subsídios e as pessoas tinham que emitir documentos, tinham que abrir contas bancárias para receberem as compensações. Então era a Total que ajudava o Estado a emitir os próprios documentos de identificação. A Total deu um grande apoio ao Estado para se instalar ali. Portanto, o Estado moçambicano, uma vez que a Total já fazia este esforço no nordeste, concentrou o seu apoio, sobretudo no sul da província, porque lá tinha consciência que seria a Total a gastar esse valor. Agora parece-me que a maior parte das condições já estão reunidas ali no terreno e acho que a Total hoje está disposta a reiniciar as suas actividades. Mas parece-me que são os investidores aqueles que estão mais relutantes em investir. Penso que estão na expectativa, talvez de garantir esta questão da segurança, estão talvez na expectativa de saber quais serão as decisões climáticas que vão ser tomadas a nível global. Podem estar também na expectativa de saber o que é que os principais governos vão decidir em relação à política de gás. Eu penso que são estes fundos internacionais, estes fundos de pensões, que vão colocar o dinheiro neste grande projecto, que estão os mais relutantes em investir.
RFI: E lá está, os investidores já não estão assim tão entusiasmados com o projecto da Total em Cabo Delgado. Há também operadores económicos em Cabo Delgado que não vêem com tão bons olhos este projecto e entretanto, aqui em França, há eleitos e também ONG's que reclamam o fim deste projecto, a saída da Total de Cabo Delgado e inclusivamente a abertura de um inquérito. Julga que este é um cenário plausível?
João Feijó: O que seria o ideal aqui é que fosse a sociedade moçambicana a pressionar o Estado a realizar um inquérito para se avaliar exactamente o que é que aconteceu e corrigirem-se esses erros e responsabilizarem-se as pessoas e fazerem-se reformas. Acontece que o governo moçambicano não é particularmente sensível às pressões das pessoas. O pacto social moçambicano não prevê este escrutínio da população às acções do Governo, não obstante haver esta possibilidade de eleições de cinco em cinco anos. Então, o Estado moçambicano, muitas vezes, é mais sensível às pressões externas e neste caso, seriam as pressões da parte de um grande investidor -a Total- poderia ter um papel aqui importante, se dissesse 'nós só vamos regressar no dia em que houver aqui uma reforma e uma investigação neste aspecto, neste e neste', o Estado moçambicano aí talvez fizesse alguma ginástica para realizar um relatório e, de alguma forma criar uma narrativa para justificar o que aconteceu agora a nível internacional. Se a esquerda europeia tem capacidade de obrigar a Total fazer essa investigação e responsabilizar a Total, eu não sei. Mas tudo vai depender das encruzilhadas políticas que houver aí na Europa e dos jogos de interesses e dos lobbys. Se houver lobbys contra o gás, poderão usar este incidente para incriminar a Total e interromper este projecto. Então, tudo vai depender da força política destes lobbys de interesses que muitas vezes têm outros interesses energéticos por trás, de energias alternativas ou de energias não-alternativas, se calhar do nuclear ou das eólicas, das renováveis, etc.